A minha filha trabalhava na zona do Campo Grande e, numa das pausas do trabalho, foi com as colegas ao café e viu um gatinho minúsculo, branquinho, com o focinho farrusco e grandes olhos azuis a tentar beber leite de um pires.
A senhora do café explicou que aquele gatinho aparecia ali desde a véspera e ela tinha começado a dar-lhe de comer, pois parecia ser muito novinho e estar perdido. A minha filha ficou encantada com o gatinho, que fugiu, assim que ela se aproximou.
A meio da tarde, em nova pausa, voltou ao café e lá estava o gato, escondido entre as ervas, a espiar o melhor momento para voltar a mendigar comida. A partir daí, ela e a colega arquitetaram todo um plano para salvar o bichinho: como ela se deslocava de scooter, não ia conseguir levar o gato para casa, mas ligou ao irmão, que por acaso estava na faculdade ali ao pé e ia sair também às 18:00.
Então, já imbuída do espírito de salvamento, foi comprar uma transportadora, uma caixa para a areia, comida e areia e até brinquedos… A dificuldade foi apanhá-lo, até porque em dezembro, às seis da tarde já é noite. Foi à luz de telemóveis e com a ajuda de uma senhora que apareceu e desapareceu do nada, que, após muito esforço e paciência, conseguiram pegar no gatito e metê-lo na gateira.
O meu filho, embora colaborasse nesta aventura, estava muito cético, pois sabia que nem eu nem o meu marido queríamos animais em casa. Entretanto, alheia a todas estas manobras, eu continuava a passear com o meu marido, fomos jantar fora, sem dar conta das mensagens que chegavam ao meu telemóvel.
Quando finalmente chegámos a casa, já depois das 10 da noite, fomos recebidos à porta com um expressivo "mãe!"... Na cozinha estava ela e a colega, com uma atitude muito suspeita...
Indagando o que se passava, reconheci não ter visto mensagens nenhumas e fomos conduzidos entre risinhos nervosos e palavras atrapalhadas, para o quarto dela, onde, deitado na cama, estava uma nuvem de pelo branco e uns olhinhos azuis muito abertos a fitar-nos com um ar suplicante.
Enquanto a minha filha tentava explicar o aparecimento daquele ser indefeso na cama dela, eu tentava processar o que se estava a passar.
O meu marido, o primeiro a não querer animais em casa, já tinha pegado no gato ao colo e começava a verificar o estado debilitado do bichinho.
A minha filha não tinha perdido tempo e já o tinha levado ao veterinário que determinou o sexo, a idade aproximada e o estado de saúde preocupante: tinha o ventre muito inchado causado por uma desnutrição muito acentuada, uma obstrução intestinal grave os olhos amarelos causados por uma infeção ocular e uma marca sem pelo por baixo do olho direito, fruto de alguma briga recente. Seria um milagre se sobrevivesse.
Na casa de banho estava já montado o estaminé do animal, com caixa de areia e cama, medicamentos e comida.
No discurso atrapalhado dela, garantiu que ia tratar do gato até ele ficar recuperado e depois encontrar quem o adotasse. Implorou para que o deixássemos ficar nessa condição, responsabilizando-se ela pelos seus cuidados.
O meu marido já estava rendido ao ponto de sugerir que o gatito ficasse no quarto dela nessa noite, para estar mais quentinho... O pobrezinho estava tão exausto, que adormeceu de seguida e roncou toda a noite, de satisfação, alívio e sabe-se lá o quê mais...
Mais tarde, já deitados, discutimos o assunto entre os dois e nenhum de nós teve coragem para se impor e levar o animal para um abrigo. Ao ver a nossa filha tão empenhada em salvar o animal era ao mesmo tempo comovente e gratificante. Ela estava a atravessar um momento particularmente difícil da sua vida, pois tinha sido vítima de uma relação violenta durante dois anos, até nos ter pedido ajuda e a termos ido resgatar a Espanha, com a ajuda da Guardia Civil. Era agora também ela um animal assustado, carente de atenção e cuidados, tal como o gato. Assim, podia ser que fizessem bem um ao outro…
O amor incondicional deste pequeno ser por ela foi um autêntico bálsamo para a sua alma ferida e uma ajuda preciosa no seu renascer das cinzas. Só por isso o Pingo já teria conquistado o seu lugar nas nossas vidas. No entanto, a falta de tempo e de espaço para ele fazia-nos questionar se não estaríamos a ser egoístas ao manter aquele ser curioso e brincalhão por natureza preso entre quatro paredes, sozinho a maior parte do tempo…
Por isso, durante vários meses, tentou-se, (embora com pouca convicção), arranjar quem quisesse adotar o Pingo. Até que um amigo meu, depois de ver uma publicação no facebook, se prontificou a ficar com o gato, já que tinha uma vivenda com quintal e gostava muito de animais. Levámo-lo até lá, como todo o arsenal de brinquedos e utensílios que lhe pertenciam e viemos embora com o coração partido...
Enquanto lá estivemos, o gato não saiu de debaixo do sofá, e, dois dias depois, o meu amigo telefonou-me a dizer que tínhamos de ir buscar o gato. Ele não comia nem bebia desde que o tínhamos lá deixado, e não parava de olhar para a porta. Já tinha escolhido os donos, e não era ele... De imediato o meu marido e a minha filha se aprontaram, meteram no carro e rumámos a Azeitão, onde nos esperava um Pingo muito assustado e carente. E assim voltou para casa e foi tacitamente aceite como membro da família.
Entretanto o meu marido começou a trabalhar a partir de casa e o gato adotou-o como o seu humano de eleição, quiçá compreendendo que era dele que dependia a sua permanência em definitivo na família :)
Os laços foram-se estreitando, o Pingo revelou-se um gatinho muito afetuoso, brincalhão e inteligente. Dormia longas sestas em frente ao computador, com o braço do meu marido a fazer de travesseiro, ou deitado nas suas pernas. Seguia-o para todo o lado e aprendeu a jogar à bola como um verdadeiro defesa de 1ª linha!
Era frequente o meu marido enviar-me fotos durante o dia do gato nas poses mais estranhas e fofas...
Não mais se falou em adoção e passados 5 anos, continua a ser o ai-jesus da casa.
A minha filha recompôs a sua vida, foi morar com o novo namorado quando começou o confinamento e o gato ficou connosco, agora já numa casa maior, com grandes varandas (com rede, claro!) onde passa o tempo a observar os passarinhos nas árvores em frente.
E continua a seguir o meu marido para todo o lado, sem vergonha nenhuma de demonstrar a sua preferência!
E muito honestamente, quem consegue resistir a este focinho lindo?
Texto enviado por Mafalda Garcia
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