Opinião

A lábia da excelência em educação

Não é hoje possível abrir um livro sobre educação, consultar um artigo sobre educação, ler um despacho sobre educação, assistir a uma conferência sobre educação sem que a palavra “excelência” ali nos assalte como uma espécie de medalha terminal de todo o esforço pessoal, profissional e académico. Uma esposa troféu.

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Rui Correia

Escolas de excelência, práticas de excelência, cursos de excelência, padrões de excelência, professores de excelência, desempenhos de excelência, gestores de excelência, quadros de excelência são expressões que invadiram até à náusea toda a paisagem educativa. Curiosamente, enquanto as instituições educativas perseguem excitadamente a “excelência”, tentando por todos os meios que tudo seja cândido e virginal no seu exercício, a maioria das melhores empresas privadas anda a fugir da palavra “excelência” a sete pés. Têm vindo a aperceber-se de que a benigna alegoria da excelência gera maior custo do que benefício.

O fracasso da excelência

A armadilha nasce no momento em que uma pessoa ou uma entidade acreditam que se consegue ir afinando uma máquina ou uma maneira de agir, de tais modos e com tais brios, que mais tarde ou mais cedo a excelência há-de acabar por chegar e alumiar o caminho de todos. Seria bom que assim fosse. Mas não é. Nunca foi nem será. Aquilo que ontem era excelente, não o é hoje e não o será amanhã.

A excelência é contingente na sua essência. O maior estorvo é que o encargo da excelência parece convidar ao aviltamento do erro e do incerto como elementos de progresso. E o erro e o incerto só são imprestáveis quando os deixamos em paz e não os estudamos devidamente. Todo o empresário conhece bem a importância dos muitos riscos que cometeu. E lembra-se muito bem dos negócios de que se arrependeu. Há mesmo quem tenha aprendido muito com eles. Ou seja, toda e qualquer excelência apenas se obtém por causa dos erros e dos riscos que se cometeram.

Nenhuma pessoa ou entidade que procure o sucesso se pode dar ao luxo de pretender não errar, nem arriscar. Não é improvável que precise mesmo de fazer mal para fazer bem. Chama-se a isso aprender com os erros. Errar não é só banal. Errar é fatal. É até mais do que isso: é uma rampa de sucesso, a plataforma para todo o progresso. Talvez mesmo a mais influente. Não existe, pois, excelência sem fracasso. Se assim é, temos de juntar mais uma cadeira, prato e talheres para o erro. Ele vai aparecer para jantar.

A primeira pessoa do singular

O logro maior é acreditar que não há lugar na excelência para a derrota, para a incerteza. E todos sabemos que ninguém está certo a maioria das vezes. Muito menos uma instituição. Quando uma pessoa ou uma instituição ambiciona ser todas as coisas para todas as pessoas, raramente acaba a ser alguma coisa para quem quer que seja. Ora, se o erro é o caminho inevitável para podermos ser melhores, como fazemos para conciliar o erro com a excelência? A resposta é descomplicada: basta cultivar aquilo que cada um tem de único para oferecer. A sua singularidade. A trapaça da excelência convida a que toda a pessoa se comprometa a realizar tudo de um modo convencionado que exclua toda a sua singularidade; que é, de resto, a única coisa que tem para oferecer, seja ela uma pessoa ou uma instituição.

O afã da excelência implica a inevitável conclusão de que nem todos são excelentes, o que é demolidor de qualquer entusiasmo profissional. Basta ver a risada colectiva quando se pretende que todos os professores queiram ser excelentes nas suas obtusas avaliações profissionais. "Não podem ser todos excelentes”, costuma ser o argumento, vindo do mais elementar senso comum. É uma verdade mentirosa. Porque a excelência é uma verdade que mente.

De que falamos quando falamos de excelência? De não cometer erros? Cumprir a norma? Isso não é excelência. A única maneira de garantir a excelência foi sempre haver lugar para o risco de fugir da norma; duvidar do regulamentar.

Vestir a camisola

A armadilha da excelência é pretender que ninguém arrisque cometer falhanços espectaculares e organize toda a sua prática em função da rejeição do lapso, do malogro, da falha. E tudo parece bem. Contudo, como não há criação sem falhas, também não existe progresso sem criatividade. Não existe sucesso, verdadeiro sucesso, significante sucesso, sem imprecisão, não há originalidade sem actos falhados.

Procurar garantir que tudo é feito de acordo com aquelas regras que regulamentam a “excelência”, implica dissuadir a imprevidência de errar, de aprender com os erros e, na verdade, de ser criativo, original, único, contestando a regra, pondo-a à prova e testando os seus limites, a sua blindagem. É isso que as empresas perceberam. Aperceberam-se de que a “excelência” marginaliza muito mais do que enaltece. Pretendem estimular a criação e a singularidade dos seus trabalhadores. De cada um. Querem escutá-los. Fazer com que percebam que têm responsabilidades de autoria. Querem promovê-los. Querem que vistam a camisola. No tamanho certo, XS, S, M, L, ou XL.

A mina terrestre

No território da educação, temos assistido ao longo das últimas décadas ao vilipêndio do singular. Quando se descobre uma prática educativa que, num lugar, numa comunidade, se reputou de “excelente” logo se pretende que seja essa prática difundida, disseminada, enxertada – e mesmo imposta - a outras comunidades que não têm sobre ela qualquer sentimento de autoria, de apropriação.

Aquilo que faz com que por todo o lado se esteja a abandonar o conceito de excelência é porque ele afugenta os criadores, reprova os desvios, incita à indiferença. Num mundo de constante evolução, a apatia destrói aquilo que uma comunidade humana – qualquer que ela seja – tem para oferecer: a sua particularidade, a sua originalidade, a sua marca de autor, a sua excentricidade.

Em educação a indiferença é a mina terrestre do êxito. Destrói todos os que a detonam ou passam junto dela. Aquilo que mais expõe a rasteira da “excelência” é que todas as práticas de excelência nasceram da ruptura com o convencionado. Nasceram da pulsão criadora de uma pessoa e de uma comunidade. Resolveram problemas concretos, problemas sentidos na primeira pessoa, na pele.

No domínio da educação esta premência da autoria, do desvio e esta presidência do erro são absolutamente cruciais. Tudo é precário em educação. Nenhum professor é “excelente” se não for capaz de integrar nas suas rotinas o risco, o desvio, o sobressalto, o improviso, a intuição, o fracasso, o tacto, numa palavra, o arrependimento.


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