Na televisão, os futebolistas tapam a boca para falar, excepto se for para dizer palavrões. Se for para dizer obscenidades do piorio não só será transmitido em sinal aberto, como podem até ficar cientes que há-de haver um realizador de televisão disponível para fazer um replay contínuo em câmara lenta de cada letra soletrada do palavrão, até que rigorosamente toda a gente compreenda sem equívocos para onde o jogador mandou que fosse a mãe do árbitro. Ou de outra pessoa qualquer.
Por vezes até nos obrigam a deixar de assistir ao jogo para não perder pitada de tão insolente e ordinário asneiredo.
Dias depois, semanas até, haverá mesmo quem se dedique a legendar trocas de indecências entre treinadores ou “responsáveis do clube”. Que ninguém se prive do direito a toda a abjeção vernacular. Legendada e traduzida em várias línguas. Imagens de palavrões legendados hão-de dar a volta ao mundo viral porque o mundo está interessado em palavrões legendados.
Pouca parra para muita uva
Nada disto impede que logo a seguir se filme um rapazinho ou uma rapazinha sorridentes, apenas para que um comentador conclua que está um óptimo ambiente para levar toda a família aos estádios e pavilhões.
Não obstante, como uma parra estrategicamente colocada em cima de um pénis de mármore, as mesmíssimas pessoas que dissecam filmicamente um palavrão e uma grosseria, serão os primeiros a proibir que sejam divulgadas imagens de palermas que invadem o campo para abraçar um jogador ou para mostrar as suas insuficiências íntimas. Por prevenção. Para evitar que outros palermas copiem o exemplo e estraguem a coisa. Todos concordamos. Mas não no palavrão.
Há uma espécie de jejum ético intermitente que não chega ao palavrão. Tapam-se os palavrões com piiis ou caras e bocas desfocadas, como burkas pueris, que são, como toda a gente sabe, as formas mais eficazes de atrair as atenções para tudo quanto seja realmente malcriado e injurioso.
O crucifixo do palavrão
Entendamo-nos: nada há aqui de virginal ou de vestal. Pouca coisa é mais saudável do que um belo de um palavrão oportuno. Há mesmo palavrões de excelente gosto. De tal modo assim é que são inúmeras as vezes em que nos culpamos por ter tido a insubordinada vergonha de os proferir num daqueles momentos em que tão obviamente os devíamos ter dito. Depois, claro está, dizemo-los solitariamente, só para que não fiquem algemados na esquadra política do nosso pudor.
São aos milhões os palavrões que lemos e escutámos nos melhores livros, filmes e canções da nossa vida. E, por vezes, chega a ser admirável a prosódia com que algumas pessoas sabem esculpir um palavrão. O palavrão tem utilidades éticas e analgésicas indesmentíveis. Quando entalamos um dedo, por exemplo. De resto, muitas das conquistas sociais de que hoje beneficiamos cresceram na companhia dos palavrões.
Mas será mesmo imprescindível que a ofensa gratuita e malcriada tenha lugar no primetime mediático?
Que pretendemos com a sua omnipresença? Que torpor boçal perseguimos nós com tanta devassa vernacular? É tão notório que, na esmagadora maioria dos casos, não existe nenhum propósito relevante em exibir e repetir obscenidades, a não ser o de denegrir um carácter e depreciar alguém em praça pública. São apenas grosserias malcriadas. Nada mais. Inutilidades cívicas ou artísticas. Nada têm de autoria ou de criação. São Autos de fé mediáticos. Aquilo que não passaria de um humaníssimo excesso converte-se em ferrete de infâmia e vexame. Poluição.
Cada professor é um traficante de influências
O que tem a escola a dizer sobre esta pestilência do palavrão e da obscenidade gratuitas? Cabe-lhe ainda ter alguma palavra a dizer sobre isto ou não são contas do seu rosário? Neste domínio a escola é como cão em vinha vindimada? Resta-lhe a resignação e a pachorra? Nada mais?
Um professor é um traficante de influências. É essencialmente esse o seu emprego. O de garantir que os miúdos andam em boas companhias. É um sommelier de boas castas. Um ajuntador de letras e números, fenómenos e imagens, pensamentos e autores coleccionados a dedo para serem confiados a um miúdo. Tão bem acompanhado, o seu caminho será buliçoso, equilibrado e empolgante.
Cada professor adoraria garantir que o percurso de cada discípulo seu tem reservado um direito de admissão. Idiota não entra. É de tal forma poderosa e permanente esta influência que há mesmo quem defenda, e a acenar estudos científicos, que na verdade somos muito mais o lugar onde estamos do que de quem vimos. Ou seja, o mundo por onde circulamos faz de nós quem realmente somos. Muito mais do que a genética ou as coisas que os pais dizem ou fazem.
Somos onde somos
O lugar e o meio que habitamos representa a quase inteireza daquilo que somos. Com quem andamos, com quem falamos, que amigos, que exemplos conhecemos, que universos frequentamos parecem ser influências dominantes da pessoa que vamos sendo. É o célebre “diz-me com quem andas”. Como salmões rijos, vamos galgando o rio, capazes de superar correntes rápidas, turbulentas e até mesmo quedas de água. Somos onde somos. Que a fadiga e os ursos nos deixem em paz. É uma espécie de geografia da maturidade. Andamos todos em andaimes diferentes mas a trabalhar nas mesmas obras.
Ora se assim for, e assim parece ser, temos a obrigação de todos contribuirmos para garantir que, a todo o instante, transformamos o lugar onde somos num espaço de amabilidade, descoberta, solidariedade e cuidado.
Cumpre a cada um de nós encher os lugares de boas influências. Fazer escolhas e estorvar enxovalhos. Diga-se o que se quiser, ser amável e gentil é coisa bastante universal. De tal modo assim é que vivemos sob a autoridade das leis. Leis humanas e falíveis, sem as quais se perderia toda a liberdade. Compreender o Outro e dar-lhe a mão não são coisas que exijam grandes enciclopedismos. Não é preciso ler Aristóteles, Kant ou o Peter Singer para saber o que é a ética prática. (Embora ajude e muito). Os romanos resolveram a questão consagrando os Mores Maiorum. Ou seja, o Mos Maiorum era o conjunto de todos aqueles princípios que ao longo de séculos se revelaram indispensáveis para se saber viver em sociedade e recusar a barbárie. As regras elementares para saber viver ao lado dos outros sem lhes atropelar a dignidade.
Os costumes. E por costumes não se entendia viver de acordo com o passado. Significava nunca desconhecer os princípios sociais elementares que o tempo repetidamente validou e estabeleceu; ou seja, não ser incauto e não ignorar aquilo que normalmente produz boas soluções e redunda em bons desfechos.
A borbulha indecorosa
Que ninguém se surpreenda, pois, com a quantidade de palavrões – sumarentos - que se ouvem nos corredores de todas as escolas portuguesas. É resultado de muito estudo. Os nossos miúdos aprendem, como sempre aprenderam, com os exemplos que lhes proporcionamos. E nem sempre os “maus” exemplos – como os “bons” - vêm de casa.
Falar de palavrões é apenas um degrau para outras escadarias e altitudes éticas. Mas este tipo preciso de palavreado é um sintoma. Uma borbulha da gigantesca falta de decoro, comedimento e compostura que a todos aflige na arena pública.
A escola tem a obrigação de reclamar um melhor lugar para os nossos miúdos. Recuperar o silêncio e a reflexão. Credibilizar, até, o palavrão. Perceber a sua estatura. Aprender o seu valor criador. Todos somos escola. A escola é apenas mais outra das muitas universidades da vida. Existe diferença entre o vexame e a revolta, entre a cobardia e a indignação. Quem não entende esta distinção precisa, clinicamente, de muita, muita escola.