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Sexo e escola – o mofo mental

Opinião de Rui Correia. Suzette Baker foi despedida por se ter recusado a retirar livros da biblioteca onde trabalhava, na sequência de queixas que denunciavam haver ali textos “pornográficos” e “inapropriados”. Não se pense que o assunto se circunscreve aos EUA. Bem pelo contrário.
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Rui Correia

Parece mentira, mas não é. Nas bibliotecas escolares do Estado da Florida, basta que uma só pessoa se queixe do conteúdo de um livro para que ele seja imediatamente retirado das prateleiras. Que o diga Suzette Baker, uma bibliotecária que foi despedida por se ter recusado a retirar livros da biblioteca onde trabalhava, na sequência de queixas que denunciavam haver ali textos “pornográficos” e “inapropriados”.

Previsivelmente, os livros que mais melindram a sensibilidade dos queixosos são todos os que falem de sexo, biologia sexual ou identidade sexual. Mas não só. Recentemente, um livro para crianças sobre flatulência foi também “cancelado”, como agora se diz.

Não se pense que o assunto se circunscreve aos EUA. Bem pelo contrário. A pulsão censória é global. A Europa anda a discutir livros, manuais e currículos escolares com a mesmíssima finalidade.

Historicamente, segundo o “Global Book Banning Statistics”, o velho continente é responsável por 33% do conjunto mundial de proibições de livros. À Ásia são atribuídos 44% de todas as censuras literárias no mundo, com a Índia a ocupar o lugar da frente (11%).

A Bíblia, esse kamasutra cristão

O contágio puritano da censura literária avança todos os dias. Em 2021 deram entrada nos tribunais cerca de 1300 queixas com a intenção de proibir e remover títulos das bibliotecas públicas e escolares norte-americanas, o valor mais alto de sempre. No Estado de Oklahoma uma proposta de lei procurou mesmo banir categorias inteiras de livros nas bibliotecas escolares. A proposta de lei declarava que nenhuma escola “deve manter em inventário ou promover livros que tenham como assunto principal o estudo do sexo, estilos de vida sexuais, actividade sexual, ou livros que sejam de natureza controversa que um pai ou responsável legal gostasse de conhecer ou aprovar antes de ver o seu filho exposto a esse título”.

Em Davis, Utah, um pai exigiu que a Bíblia desaparecesse das escolas por estar “repleta de sexo” e porque não queria sujeitar o seu filho a tanta libertinagem. Em sentido inverso, o Estado de Illinois aprovou recentemente uma proposta de lei que proíbe a proibição de livros.

Biblioteca escolar, o covil da indecência

Cresce também a tese pela qual deve estabelecer-se uma curadoria governamental dos títulos que possam ser aprovados oficialmente para poderem integrar a relação de livros permitidos aos leitores das bibliotecas escolares. Um Index para crianças.

O caso de Suzette Baker, em Llano County, Texas, tornou-se particularmente emblemático, uma vez que, ali, o poder judicial, para além de decretar a remoção dos livros, chegou a considerar a possibilidade de se encerrarem todas as bibliotecas públicas da região por, na arrebatada opinião dos queixosos, acolherem “material pornográfico”.

O movimento popular a favor desta moção não foi pequeno. Entre os manifestantes escutavam-se os seguintes argumentos: “Os pais acreditavam que era seguro deixarem os seus filhos numa biblioteca e que ali dentro não seriam atacados, mas parece que não é assim”. “Estes livros falam sobre assuntos que apenas dizem respeito aos adultos”, referia outro dos manifestantes que a si mesmo se descrevia como “cidadão do reino de Deus”, enquanto em seu redor populares rezavam e cantavam “Amazing Grace”.

Um papalvo entre malucos

Um grupo de cidadãos opôs-se à decisão do juiz e organizou-se para condenar e combater estes vereditos em tribunal. Venceram. Conseguiram obter uma sentença que obrigou a devolver às prateleiras todos os títulos censurados e garantiu que nenhum livro será removido, seja por que motivo for, pelo menos enquanto os processos judiciais permanecerem em discussão. Aguarda-se uma sentença final.

Entretanto, foi também crescendo uma terceira corrente de opinião, dita moderada, que advoga “o equilíbrio das posições”, defendendo que “mesmo não concordando com os conteúdos daqueles livros, devem manter-se as bibliotecas abertas ao público, porque constituem pilares da comunidade”. Proverbialmente, qualquer papalvo se crê “moderado” quando percebe que está cercado de gente ainda mais maluca do que ele.

Hérnia é coisa para neurocirurgiões

O melhor sistema político que todos sempre ambicionamos é o da Aristocracia: o governo dos melhores (aristos), na acepção aristotélica. Aqueles que têm a melhor formação intelectual, moral e cultural devem ser os responsáveis por um governo “justo e sóbrio” que assegure a felicidade dos governados. O problema da Aristocracia é aquele que se adivinha: como se descobrem os melhores? Como os destacamos da multidão, na imensa turba dos ignorantes? É aqui que a democracia pode dar uma ajuda, dando aos cidadãos os instrumentos necessários para eleger os seus melhores, a sua aristocracia.

De uma coisa temos a certeza: nenhum de nós quer ser operado a uma hérnia por alguém que sabe uma coisa ou outra sobre neurocirurgia. Nenhum de nós quer ser julgado em tribunal por alguém que passou as últimas duas semanas a googlar Direito. Nem para desentupir um cano nós procuramos alguém que não seja canalizador. O mesmo deve acontecer com a cultura e com a educação.

A fogueira do livro

Os bibliotecários sabem de bibliotecas e não apenas de livros. O seu papel social é imprescindível, não como curadores de coleções e seleções literárias mas como guardadores da fortuna cultural de uma comunidade.

As bibliotecas são os cofres onde se acumula a tesouraria e o cabedal ético, científico e artístico de toda a civilização humana. São fortalezas de memória, muralhas de futuro, que sustêm os avanços presentes da barbárie.

A prova disso é que sempre foram alvos do ódio e da soberba cultural. Por isso se queimaram tantas bibliotecas e se atearam tantas fogueiras de livros. “Hoje livros, amanhã pessoas”, todos o sabemos. Mas, pelos vistos, é necessário recordar que sempre assim foi, desde Alexandria. É preciso que os intelectuais se ergam contra a epidemia de estupidez que se amplia a olhos vistos. A ideia pela qual um qualquer energúmeno se sente autorizado a tentar cancelar judicialmente uma opinião contrária à sua é algo miserável que deve ser combatido com aquela implacável serenidade que só uma convicção profissionalmente sustentada pode garantir.

Onde está a Academia?

Este é, uma vez mais, o momento dos intelectuais e, claro, da Academia. É o muito falado tempo cíclico em que se exige que o homem culto se empenhe em recordar o óbvio. E recordar o óbvio requer coragem e requer instrução. Instrução já temos e de sobra. Só tarda, portanto, a coragem. Não é aceitável que a exaustão se confunda com preguiça ou cinismo. Não basta escrever artigos e mais artigos, esperando epifanias coletivas.

Um recente estudo académico sacudiu a árvore ao demonstrar que mais de 95% de tudo quanto é publicado nas universidades não é lido por absolutamente ninguém. A Academia corre o risco de se ter convertido numa indústria endogâmica de utilidades adjacentes, improdutivas. Um condomínio fechado. Um sanatório alpino. Não é esse o desígnio dos intelectuais. Devem dedicar todo o seu labor e toda a sua economia a combater a calúnia da ciência. Precisam de fazer-se escutar. Queremos usar o seu arrojo. Precisamos dos intelectuais mais do que nunca.

Uma conversa de surdos

Aquilo a que hoje assistimos é a uma discussão embravecida e surda entre trogloditas e juízes. Que terrível paridade. O silêncio perante esta alarvidade em que o “homem da rua” se junta a outro “homem da rua” para tentarem impor infâmias sobre os demais é uma obscenidade destes tempos. Não há, é certo, muito de novo nisto. Já atravessámos sombras destas antes. Sabemos como se derramam. Sabemos que o último apaga a luz.

Temos um exército de profissionais da cultura, no activo ou reservistas, que recrutamos agora para que liderem o combate. O assunto é controverso? Plural e complexo? Claro que é. Mas é justamente para isso que servem os intelectuais, os estadistas, os professores, os cientistas e os poetas.

Cumpre-lhes a serventia cívica de recordar, didática, maiêutica, eloquente e seguramente os argumentos poderosos que aniquilam toda e qualquer arrogância cultural. Vinda de fora ou de dentro, da esquerda ou da direita, que a estupidez sabe ser bastante igualitária e internacional.

A obsessão com o sexo nas escolas revela este bafio mental, esta infeção fúngica, este ranço cultural que a todos nos desonra. Existe tanto por fazer. A cultura de cancelamento é uma negação de si mesma. Cancelar nem sequer cancela coisa nenhuma. Cancelar é gritar de olhos fechados com os dedos espetados nas orelhas. Cancelar é somente virar costas à luz, preferindo confiar o destino a uma sombra. Nada há de novo nisto. A não ser que a sombra aí está, novamente, para tentar cumprir a sua noite.

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