Andamos de coração despedaçado por muito sofrimento que vai por esse mundo fora, mas aquela mulher e aquela criança puseram-nos de comoção solta e de aperto insuportável no peito. Só quem não viu. Só quem não quis ouvir.
Quando se vêem as imagens daquela premeditada câmara de videovigilância, sentimos que nos invade um asco vingativo, que sabemos primário e vil, mas que mal sabemos conter. E apenas nos reprimimos porque a vida ensina-nos que é sempre melhor ter razão do que deitá-la a perder.
Ver para não crer
Não são, nem de longe, as primeiras imagens deste tipo que vemos. Na verdade, é de prever que vejamos mais daqui em diante. As câmaras, como o medo, são cada vez mais omnipresentes. Não são também nenhum “abre olhos” porque todos sabemos do que se passa em casa de tantos portugueses. Vizinhos, muitos deles. Familiares, até. Mas a brutalidade é maior quando ela expõe, com nitidez eletrodoméstica, a minúcia do martírio.
A voz cortada da criança e a ferocidade miserável do brutamontes representam muito do que se vive dentro de tantas casas.
Vivemos um tempo em que não se pode acreditar em nada do que se vê. Longe vai a proverbial cautela do discípulo Tomé que só acreditaria na ressurreição de Cristo se pusesse os seus dedos onde antes se pregaram os cravos. Ver para crer.
Hoje, tentamos todos viver num mundo em que nada do que vemos é bastante para crer. As inovações tecnológicas permitem criar qualquer filmezinho que concretiza qualquer ideia por mais inverosímil ou infame que seja. Hoje, tudo é possível. Abunda em perícia digital o que nos falta em decência.
A pedagogia do abuso
Mas a súplica daquele rapazinho não ecoa profundamente apenas nas nossas consciências. Aquela voz ecoa também nas nossas escolas. Públicas e privadas. Somos todos aquele menino. Os professores conhecem aquela voz. Sabem que nada é mais difícil do que provar em tribunal os maus tratos e abusos que se abatem sobre uma criança. Já muitos Directores de Turma tiveram de testemunhar em processos judiciais e confirmaram como a justiça não se deve aplicar sem equidade. E nem sempre a equidade se traduz numa condenação.
A exposição de crianças à cobardia doméstica representa talvez o seu silêncio mais secreto. São centenas os professores e psicólogos escolares que conseguiram aceder a esses silêncios e os transformaram em conversas duríssimas e sensíveis em que se expuseram adultos e se conseguiu quebrar ciclos de abuso.
O conceito de família não tem qualquer forma de ser devolvido à sua formulação tradicional. Contudo, é na família que o abuso se ensina. É ali que a barbárie se torna irreparável.
Ainda há muitos que agem conforme a ideia de que a violência é um modo admissível de exercer a autoridade parental. E não são poucos os exemplos em que até juízes se pronunciaram a favor de um certo exagero na condenação dos castigos corporais. Umas “bofetadas” e umas “palmadas no rabo” foram consideradas “correcções moderadas” num acórdão de 2006 do Supremo Tribunal de Justiça, ou do tribunal da Relação de Évora que, em 2024, conjecturava sobre a irrelevância criminal desses castigos.
Bater só adia
“Mas que mal tem dar uma palmada certeira no rabo certo, no momento certo, com a moderação certa?”. “Eu levei bastantes e nunca me fizeram mal nenhum. Abençoadas!”. “Depende da circunstância; há contextos e contextos”.
Ouvimos coisas como estas muitas vezes. O problema da “palmada” – eufemismo macio para galheta, bofetada, estalo, murro, cinturada, chicotada, reguada, soco e pontapé - é que a agressão nunca se fica pela dor que cause ou o trauma que suscite. Antes de mais nada a palmada revela sempre dois traços indisfarçáveis do agressor: descontrole e cobardia.
A bofetada não funciona porque nunca se esgota na circunstância. Adia apenas a superação dos problemas. Amordaça-os e não os extingue. O mal é, realmente, duplicado. E regressará a dobrar. Não só não resolve um problema como cria outro. Esta suposição de que a bofetada pode ser legítima iliba o destempero, amnistia a pusilanimidade e prolonga o ciclo de violência.
Como perguntava uma miúda de 16 anos, placidamente, numa recente inauguração de uma instalação escolar sobre violência doméstica: "Porque é que é tão grave que o meu namorado me bata, se o meu pai também me bate?". Os filhos aprendem com os pais que não tem mal nenhum perder as estribeiras e obter poder pela força. Tudo coisas sem as quais viveriam bem melhor. Uns e outros.
A derrota do remorso
Uma bofetada dada “no momento certo” é um falhanço. Representa sempre uma derrota pessoal, um fiasco, uma desilusão. E são milhares os pais e mães que ruminam essa desilusão ao longo de décadas, porque erraram “daquela vez”. Porque se excederam.
O poder que resulta de calar um miúdo à pancada não vale o remorso da cobardia que produz para sempre. O pior vem depois. Mas só vem para alguns. Só vem para os melhores dos piores.
Quando uma escola percebe com clareza que os maiores agressores do recreio são miúdos que já levaram muita bofetada, soco e insulto em casa, rapidamente percebe o que significa a palavra “ciclo”. Seja no primeiro ciclo, no segundo ou no terceiro, o ciclo da violência perpassa por todas as idades. E não se extinguirá na escola se a família não o souber reconhecer e interromper. E é a todos que compete eliminar essa mentira rude e calaceira de que bater funciona.
A embriaguez da galheta
Bater num miúdo é uma forma fascista de o humilhar. A disparidade de forças é sempre flagrante. Bater num miúdo é um facto irrefutável de cobardia. Mas não sejamos ingénuos. A bofetada, a palmada, iludem. A galheta é, para muitos, um verdadeiro sucesso educativo.
“Ninguém batia em ninguém se bater não funcionasse, certo? O miúdo estava insuportável e, com uma galheta bem assente, ficou caladinho e ajuizadinho como por milagre”.
O sucesso da galheta é que chega mesmo a parecer que funciona. O mal está em que apenas funciona para quem acredita em milagres. E nem todos acreditamos em milagres. Muito menos os professores que sabem exatamente onde vão parar todos estes “sucessos educativos” inspirados na galheta. Vão parar aos incessantes assédios, extorsões, gritarias, frustrações, faltas de educação e às enxurradas de palavrões que enchem os intervalos e até as salas de aula.
Mal vistas as coisas é mais ou menos aquilo que se passa com a bebida: quem sabe beber, sabe que beber não aquece, mas parece mesmo que aquece. O problema é que, na verdade, beber não só não aquece como arrefece. Diminui a temperatura do corpo. Com a galheta dá-se a mesma miragem, a mesma bebedeira. Parece que resulta, mas nunca resulta. Apenas enxovalha a dignidade do atacante, nunca beneficia o infractor e paga-se com uma longa ressaca.
Entre a tutoria e a tortura
Estes meninos e meninas dos muitos Machicos que temos nas nossas escolas, superam em silêncio a sua inimputável culpa e a memória suja do que se passou na véspera em casa. São os sacrificados de todos os outros silêncios que nos devem envergonhar a todos. Os nossos. E não é porque a violência doméstica se tenha tornado juridicamente um crime público desde o ano 2000. É porque apenas se tornou um crime público desde o ano 2000. Portugal chega sempre tarde à ignomínia.
De nada adianta esgotar os recursos de uma escola com acompanhamentos psicológicos, mentorias, tutorias e quejandos, mais uns relatórios das cêpêcêjotas deste país se a repugnância contra o terror e a tortura não se converter num desígnio pragmático dos nossos media, dos nossos governos, da nossa terra, da nossa escola, do nosso bairro, da nossa casa.
Podemos não ter lágrimas e indignação suficientes para conter a revolta da cobardia doméstica contra mulheres e crianças. É tão humano não conseguir conter ímpetos sôfregos de vingança como fazê-lo. O que o menino do Machico nos implora é que paremos a cobardia para que ele saiba educar os seus filhos de outro modo.