A escola é facilitista, os conteúdos e a avaliação são facilitistas, os professores e os manuais são facilitistas, as políticas e as estatísticas são facilitistas, tudo é facilitista.
Por “facilitista” não se entenda o que a palavra na realidade quer dizer. Aqui ninguém pretende dizer que a escola tenta facilitar o que quer que seja. Facilitar, aqui, não tem nada a ver com facilitismo. Neste contexto retórico “facilitar” não é obter o mesmo efeito com menor esforço. Nada disso. Isso seria benigno e até recomendável. Não. Por facilitismo não queremos dizer “fácil”.
A difícil facilidade do facilitismo
Se quiséssemos dizer que a escola portuguesa é fácil, bastar-nos-ia dizer que hoje em dia a escola é mais fácil. E não dizemos. Porque não é. Basta escutar o que dizem dos programas de matemática os pais dos miúdos do primeiro ciclo. Neste linguajar fundamente eduquesado, “fácil” não é o mesmo que “facilitista”.
Por “facilitista” aquilo que se quer mesmo dizer é “preguiçoso”, ou seja, sem vontade nenhuma de trabalhar. Um sistema facilitista prepara professores e alunos para serem cada vez mais preguiçosos. O sistema educativo português é, assim, uma gigantesca fábrica de imbecis e de mandriões.
E isto está a resultar tão bem que temos de concluir que o sistema é estranhamente brioso nisto. Há um zelo facilitista. Ou seja, alguém está a trabalhar forte e feio neste projecto de facilitismo generalizado. Há alguém muito pouco facilitista algures por aí, no sistema. Não deve ser nada fácil ser um facilitista profissional.
O professor cumpre ordens
Ninguém sabe bem o que “facilitismo”, (ainda por cima no domínio da educação), quer dizer. Se dissermos que o professor é um facilitador, isso é benigno. Significa que procura conduzir o jovem aluno a encontrar uma forma autónoma e expedita para o seu acesso à cultura.
Não lhe faz a papinha toda mas está ali para facilitar o caminho e seleccionar os obstáculos que considera útil afastar do caminho do conhecimento. E isso é bom e profissional. Mas, se aquilo que ele faz é ser “facilitista” isso já é outro campeonato. Isso já é maligno. Significa que o professor está ali a remover toda a dificuldade do caminho e a impedir que o aluno consiga superar os obstáculos por si mesmo.
Conclusão: os professores estão a colaborar com um sistema “facilitista” que proíbe que os alunos encontrem dificuldades no seu caminho, quaisquer que elas sejam. Anda uma gente a fingir que ensina e outra a fingir que aprende.
O país da educação foi invadido por um exército facilitista e todos os professores não passam de insidiosos colaboracionistas que, ignorando a sua própria ética, dignidade e exigência profissional, “apenas se limitam a cumprir ordens”. E assim seguem estes comentadores profissionais e estes Guilhermes Tell de alpaca, fazendo mira cada um à sua maçã. Envenenadas ambas, seta e maçã.
Onde mora o facilitista?
Esta narrativa ofende cada um dos professores de um tal modo que não é possível aceitar, silenciosamente, que se vá disseminando. Até porque, se perguntarmos a qualquer professor se ele é um facilitador ou um facilitista e qual destas duas vias escolheu como prática lectiva, nenhum vos responderá que optou pela segunda.
Nenhum é facilitista. Nem nenhum sabe para onde apontar o dedo. Ou seja, o sistema é facilitista mas, aparentemente, nenhum professor está a cumprir a lei.
Pelo contrário, todo o professor condena o facilitismo em que se converteu a educação. E confessar-vos-á até que tanto facilitismo o tem levado à mais absoluta exaustão. Nunca a facilidade foi tão difícil. Ninguém sabe onde anda o facilitista.
No meu tempo é que era
Um dos comentários alegadamente mais demonstrativos de que a escola é uma sombra do que foi em matéria de exigência – ou facilidade - é quando um professor consulta as suas notas e planificações de aula de há 25, 30 anos e compara o sortido de conteúdos que então ensinava com aquilo que hoje ensina. É tão evidente que havia um outro grau de profundidade e de certeza que era entendido como apropriado às suas aulas.
Se um professor pensasse em dar aulas hoje do mesmo modo como dava aulas há duas décadas, rapidamente ficaria isolado e solitariamente frustrado por ninguém o acompanhar nessa experiência: nem alunos, nem pais, nem colegas, nem direcções de escola que o chamariam aos gabinetes para lhe perguntar o que se passa e que tome juízo.
E ele não saberia o que dizer, a não ser: “Estou a dar aulas da mesma maneira como dava há vinte anos”. E, no entanto, nenhum professor ambiciona dar aulas do mesmo modo como dava há vinte anos. Por tantas razões. Isso significaria que ficou parado no tempo e, se houve pessoas que foram sempre acompanhando o seu tempo foram os professores. É como se o mundo tivesse mudado.
Escola complicada
Houve um tempo em que o sangue, suor e lágrimas era um sintoma de algo bom que se conquistou. Sendo assim, de que falamos quando falamos de “facilitismo”? Sobretudo num tempo em que é tão óbvio que a escola se tornou muito mais complicada e recurvada do que antes.
Colhamos algumas pétalas.
Em primeiro lugar, os embaraços. Nunca as escolas foram tão objecto de escrutínio oficial como agora. Recolha de dados, aferições, estatísticas e inspecções a propósito de tudo e de nada colocam todas as práticas pedagógicas e organizacionais debaixo de potentes holofotes que minam - e não iluminam - os caminhos da exigência e da inovação.
Todos os desempenhos são vistoriados da ponta dos cabelos às unhas dos pés como uma garra adunca prestes a fechar-se. Professores são castigados a explicar níveis elevados de negativas nas suas turmas. Depois, se já não é necessário decorar tantos teoremas, tantas datas, tantos detalhes, tantas fórmulas, tantos cálculos, a verdade é que a ciência é hoje incomparavelmente mais elaborada do que era há vinte anos.
Ao discurso único e escrito em pedra sucedeu a multiplicidade de abordagens, soluções, teses, títulos e incertezas; a ciência educativa e o progresso tecnológico fizeram disparar uma explosão de variantes metodológicas, como um gigantesco fogo de artifício que cada professor tenta acompanhar porque não sabe exactamente para onde olhar.
A imposição de programas “boas práticas” representa outra das pragas bíblicas que atingiu esse Egipto chamado Educação, dando a cada profissional não apenas a sensação de que andou a fazer tudo mal nos últimos tempos, como a prometer que existe apenas uma forma “boa” de fazer todas as coisas.
Mil estudos
Por outro lado, a retórica. Cada vez temos mais gente a dizer tudo e o seu contrário. Por um lado, mil estudos revelam que as crianças passam tempo a mais na escola, e outros mil dizem que não devia haver trabalhos de casa; outros mil dizem que os resultados melhoram com trabalhos de casa e que quem tem dinheiro tem explicações por fora e por isso tem melhores desempenhos, outros mil que mostram que o ensino privado garante melhores resultados e outros mil a dizer que quem sai do ensino privado tem mais dificuldades no ensino superior. E por aí fora.
Que tal para facilitar? E se falarmos dos níveis de stress que o “facilitismo” produziu, aí então, rebentamos a escala. Os níveis de alarme e de emergência em que transformámos o sistema de acesso às universidades são tais que, hoje em dia, já ninguém acha estranho que as salas de exame mais pareçam uma escritura predial, do que um acto de aprendizagem que é a única coisa que deviam ser.
Resultado: nenhum aluno aprende com a intenção de ficar para sempre com aquilo que aprendeu. Sabe bem que basta lembrar-se provisoriamente das coisas apenas por duas horas, com tolerância de 30 minutos adicionais. Facultativos.
A árvore e a floresta
Quando falamos de facilitismo não parece sério que possamos ignorar o que se passa à volta do sistema educativo. A escola serve e recebe todos os que a ela têm direito. E há crianças em Portugal que ainda não têm direito à escola. Muito menos do que antes, mas há milhares delas. Temos ainda muito que fazer neste domínio, como comunidade.
Quando por todos os media assistimos a uma permanente e ubíqua ausência de escrúpulos e de zelo.
Quando vemos na penúria todos quantos pugnam por uma criação cultural mais digressiva e divergente.
Quando nada do que exige esforço é celebrado por absolutamente ninguém.
Quando se reverencia gente que pouco sabe, tudo fala e nada faz e se cala quem tudo faz e tudo produz, diária e discretamente.
Quando se difunde tudo e o seu contrário dando a ideia de que a ciência é uma opinião e que tudo vale o mesmo.
Quando vemos toda uma sociedade refém de espiritualidades espúrias e sequestradas por certezas absolutas e surdas aos direitos e opções do Outro.
Quando falamos de facilitismo, estaremos nós mesmo a falar de escola?