Opinião

"Perdi inesperadamente um amigo do coração"

Opinião de Duarte Gomes. Preciso desesperadamente escrever sobre isso, não apenas para libertar parte desta angústia que se entranha sem parar, mas sobretudo para o homenagear. Para dar a conhecer ao mundo quem era - e quem será sempre - este ser humano absolutamente único e prodigioso.
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Duarte Gomes

Esta semana perdi inesperadamente um amigo do coração, um daqueles que se contam pelos dedos de uma só mão.

O Paulo não era "apenas" um filósofo e poeta. Não era apenas um escritor, psicólogo ou pensador. Era uma pessoa muito especial e distinta.

O Paulo era de outro quilate, de outro nível. Vivia numa dimensão diferente da nossa, como se a Terra, gigante para cada um de nós, fosse demasiado pequena para ele. E era.

Ele via para lá do óbvio e sentia para lá das sensações. Olhava, lia, deduzia e sabia.

Sabia tudo sem que fosse preciso dizer-lhe uma só palavra. Tinha uma intuição rara, uma perspicácia fora do comum e uma sensibilidade atroz. Arrepiava.

Para lá da qualidade intelectual, da imensa cultura geral, da sabedoria e do calo granjeado do tempo, o Paulo tinha ainda algo cada vez menos comum de ver por aí: um coração limpo, uma alma pura e transparente. Uma aura radiosa.

Claro que também tinha centenas de pequenos defeitos. Era desorganizado e aéreo, desengonçado na imagem, quase irresponsável nas mundanices da vida, como o são quase todos os génios de verdade. Todos os que moram para lá da normalidade.

O Paulo adorava divagar em tertúlias pela noite dentro, com um cigarro numa mão e um copo na outra. Falava de São Tomás de Aquino e de Freud, de Descartes e de Carl Jung. Sabia-os de cor. Sabia tudo de cor. Idolatrava Agostinho da Silva, a quem apelidava de inspiração e admirava o jovem Manuel Sérgio.

Detestava intriga, hipocrisia, ganância, falsidade. Tudo o que fosse terreno, rasteiro, insidioso.

Era genuíno da cabeça aos pés. Era de uma cor só. Uma daquelas pessoas que ou se ama ou se odeia. Sem meio termo. E ele? Ele não se importava, pois claro.

Preferia a companhia leal dos seus animais - do Bart (que partiu antes dele) e dos gatos, que cuidava como seu -, do que de humanos maus transvestidos de normais.

O Paulo viajou pelo mundo, foi editor literário, criativo, terapeuta, autor de vários livros, mas nunca ficou saciado.Queria mais, queria sempre mais.

Escrevia tudo o que a inspiração lhe oferecia em blocos de papel branco, que amontoava em pilhas eternas, numa qualquer mesa de madeira que improvisava como secretária. Era viciado na escrita antiga, a da caneta, do rabisco e da rasura. Uma encantadora alma velha.

A sua partida tinha que ser como foi. Repentina. Súbita. Quase irritante. De um instante para outro.

Queria até bater-lhe, mas aposto que iria rir-se como se tivesse preparado tudo aquilo como uma espécie de piada final. O cair do pano perfeito.

Viajou antes do que queria e muito antes do que devia, mas nas suas condições: sem sofrer, sem vegetar, sem morrer devagar. Partiu sem matar lentamente os muitos que gostavam de o ter por perto. Até aí foi genial. Sacana.

Para trás, deixa um legado imenso de pensamentos e abraços, de ideias e sentimentos. É dos tais que, partindo, continua por cá.

O Paulo Anes era meu padrinho de casamento e um pai em segunda mão na minha casa, nas nossas vidas.

A sua ausência física será compensada com as mil e uma memórias fantásticas que plantou em cada um nos nossos corações. Até um destes dias, meu amigo.

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