Por cada comportamento mais acalorado ou irresponsável, há sempre duas ou três dúzias de exemplos positivos, atitudes nobres e valentes, que sublinham o caráter dos seus autores e a essência do que realmente se espera num desportista de eleição.
Mas... há sempre um mas.
Sempre que somos presenteados com momentos desses, que devemos valorizar e aplaudir insistentemente, logo surge quem tente diminuí-los e ridicularizá-los, como se essa coisa de ter atitudes dignas fosse algo nosense, incompatível com as exigências desportivas e financeiras da alta competição.
A luz quando nasceu, nasceu para todos, mas infelizmente há quem insista em viver na sombra.
Esse padrão, essa forma cinzenta e magoada de estar na vida e no desporto, não tem culpa apenas própria. Provém também de uma determinada formatação cultural, de hábitos incutidos desde cedo, que impede pessoas boas de verem coisas bonitas e elogiáveis. Há quem realmente não tenha capacidade para reconhecer feitos nem elogiar ou aplaudir tudo o que de bom é produzido por outros.
Queria dar-vos apenas três exemplos recentes, entre tantos outros que poderia aqui citar:
1. No jogo da passada 3ª feira entre Shakthar Donetsk e FC Porto, Galeno, jogador da equipa azul e branca, teve um gesto que mereceu até rasgados elogios do clube derrotado (!): ao ver que um defesa contrário estava em evidentes dificuldades físicas, o avançado azul e branco abdicou da jogada de ataque que conduzia (e que era prometedora), colocando a bola fora das quatro linhas, de forma a que lhe fosse prestada assistência médica. Além de alguns jogadores do Shakthar, até o árbitro lhe agradeceu a atitude bonita.
Adivinhem a reação dos mais indefectíveis? " Se estivesse a perder, não fazia... Eu queria era ver se fosse no início do jogo... Aquilo que ele faz cá é bem pior... São gestos da tanga, não valem nada..."Este é um grande artista"...
Vale a pena dizer mais alguma coisa? Este tipo de comentários não dizem quase nada sobre a atitude fantástica do extremo brasileiro, mas dizem quase tudo sobre quem pensa e fala dela assim. Certo?
2. No dia seguinte, António Silva, jovem central encarnado, reconheceu publicamente que tinha tido opção técnica infeliz no decorrer do jogo com o Salzburgo, penalizando a equipa com a sua expulsão, além do pontapé de penálti que resultou em golo para o adversário.
Querem mesmo ler algumas das reações imediatas a esse mea culpa espontâneo?
" Se fosse um jogo em Portugal, não te deixavam abrir a boca... Não percebo porque é que teve necessidade de falar, calado era um poeta... Estás é com medo de perder o lugar no onze... Se fosse contra X ou Y não abrias a boca, assim é fácil"...
É como é. Poucochinho mas elucidativo.
3. No jogo de abertura desta jornada (Famalicão/Arouca), o avançado arouquense Mujica viu cartão vermelho direto após pisar deliberadamente o corpo de um adversário que estava no solo. O momento foi feio, a sanção foi justa, mas foi a sua reação que ficou na retina: o jogador espanhol acatou a decisão, pediu desculpa, cumprimentou o árbitro e abandonou o terreno de jogo com a resignação de quem sabe ter errado.
Algumas das coisas que se escreveram sobre esse momento foram tão más que nem vale aqui pena citar. Digamos que ficaram na linha dos comentários anteriores.
A capacidade que algumas alminhas têm em transformar ouro em chumbo, só é possível quando há lacunas evidentes nas suas cabecinhas e corações.
A verdade é que cada um de nós, todos nós, devemos aproveitar todos estes bons exemplos para fazer pedagogia, para mostrar o lado melhor que o desporto tem, para contagiar outros atletas e agentes desportivos a fazerem exatamente o mesmo.
Boas práticas nunca são demais, sejam menores ou maiores, venham do norte ou do sul.
Fairplay não tem clube nem rivais. Não entra em campeonatos, não compete nem rivaliza com ninguém. É maior, muito maior do que tudo isso.
É a favor disso e contra pensamentos rasteirinhos que devemos continuar a lutar, não que isso vá mudar quem está demasiado velho para se livrar de raciocínios brejeiros, mas porque pode afetar positivamente a forma como os seus filhos e netos estarão no desporto e na vida.
Por mais e mais gestos como o dos Galenos, Antónios e Mujicas.