“Os jogadores de hoje são diferentes. Por um lado, são mais responsáveis e têm maior compromisso para com a profissão. Essa parte é mais acrescida do que há uns anos.”
Em oposição, Rui Vitória salienta o excesso de individualismo de alguns jogadores da nova geração: “Muitos são mais egoístas e isso deve-se também ao contexto em que estão inseridos. Os jogadores hoje são empresas. Têm muita gente à sua volta, desde um personal trainer, um nutricionista, um fisioterapeuta, um responsável pela comunicação, um psicólogo. Ou seja, é uma equipa.”
Todas essas pessoas, sublinha, “precisam de ser alimentadas e não é fácil para os clubes fazer a gestão de toda essa parte”.
Rui Vitória refere que esse outro lado do jogador, com as pessoas que tem à sua volta, dá-lhe um conforto que o torna mais indiferente a alguns reparos: “Alguns jogadores preferem ir ao telemóvel e ler que os adeptos acham que ele fez uma grande exibição do que em ouvir uma ‘dura’ do treinador. Mas os olhos do treinador são diferentes dos olhos de um adepto. Nós somos capazes de ver outras partes”.
Rui Vitória utiliza o exemplo dos números de assistências para golo de cada jogador.
“Hoje liga-se muito aos números. O jogador tem muitas assistências, fantástico, mas temos de ver que tipo de assistências. Fez um passe para o lado e foi golo. Então e outros que fazem um passe de morte e o avançado falha? Isso não conta?”
“Treinadores aprendem mais nas derrotas do que nos sucessos. Quem disser o contrário está a mentir”
São vários os títulos importantes que Rui Vitória conquistou ao longo da sua carreira. Dois campeonatos consecutivos pelo Benfica, duas Taças de Portugal, uma pelas águias e outra com o Vitória, uma Taça da Liga, também pelos encarnados, um campeonato e uma supertaça no Al Nassr da Arábia Saudita.
Conheceu o futebol das grandes condições e o da falta de condições. Treinou clubes de diferentes escalões e objetivos e uma seleção, sendo a última experiência com o Egipto na Taça das Nações Africanas. Antes, teve um passado de jogador de futebol e de professor. Tudo isto lhe permite estar em vários tabuleiros do jogo e assimilar as diferentes realidades que vai tendo. “É mais difícil comerem-me de cebolada”, refere.
“Felizmente, sempre tive mais momentos de glória do que de derrota e isso faz toda a diferença.” Mas como qualquer outro treinador, também sofreu momentos de contestação, especialmente na terceira e quarta época do Benfica.
Nesses momentos, revela, a parte mais complicada é a família. O treinador, pela vida que escolheu, pela experiência acumulada, tem mecanismos para lidar com períodos mais complicados e continuar a trabalhar. “Por outro lado, a família pode ficar mais revoltada com muita coisa que vê, lê e ouve. E aí é importante ter filhos fortes, com uma boa estrutura, porque as outras crianças conseguem ser muito cruéis.”
É precisamente nas fases conturbadas que os treinadores conseguem “ligar todas as antenas”.
“Os treinadores aprendem mais nas derrotas do que nos sucessos. Quem disser o contrário está a mentir. E os clubes também têm de se mentalizar que a melhor forma de desenvolver um bom trabalho e fazer uma equipa crescer passa por ter paciência e não deixar o treinador cair aos primeiros maus resultados ou depois de uma época menos conseguida.”
Rui Vitória diz que, na ausência de títulos, há outros fatores que têm de ser considerados no trabalho do treinador. “O que foi feito e não existia antes, o que foi construído, a forma de jogar. Os títulos são importantes, claro, mas nunca podem ser o único ponto de avaliação.”
O treinador dá o exemplo de clubes de topo, que estão sempre a lutar por todas as competições até ao fim: “Cada vez a política é manter o treinador por vários anos e vemos que isso dá resultado.”
“Renato Sanches devia ter ficado no Benfica mais uma época”
Rui Vitória foi responsável por lançar Renato Sanches na primeira equipa do Benfica, durante a temporada 2015/16, e o médio, na altura apenas com 18 anos, teve um impacto imediato: “Ele transmitia tudo aquilo que as bancadas gostavam de ver num jogador. A irreverência, a forma de pegar na bola, de furar linhas. Nessa altura, a maioria dos médios formados em Portugal eram muito inteligentes, mas recebiam e passavam. O Renato tinha um perfil diferente, era atrevido e destemido, e isso também gerava uma maior tolerância da parte dos adeptos. As equipas acabam por ficar mais alegres com estes jogadores que saem do padrão normal.”
O treinador também salienta um aspeto que considera menos importante, mas que ajudou Renato a destacar-se.
“Tem uma parte comercial fantástica e uma imagem muito fácil de identificar, pelo estilo, pelo cabelo, e tudo isso também o distinguia e transmitia uma alegria muito grande.”
Em apenas seis meses, Renato Sanches sagrou-se campeão nacional pelo Benfica, foi transferido para o Bayern Munique por uma verba a rondar os 35M€, venceu o Europeu por Portugal e seria considerado o melhor jogador da competição. A partir dessa fase, sentiu algumas dificuldades de adaptação.
Rui Vitória defende que a saída para o estrangeiro foi demasiado rápida: “Tenho a opinião que não deveria ter saído logo, mas o mercado funciona assim e não havia nada a fazer. É o sistema do futebol”, lamenta. O treinador considera que uma segunda época no Benfica, com as dificuldades desse novo desafio, teria sido muito importante no crescimento do jogador: “Foi logo para uma realidade muito diferente num clube que queria rendimento imediato até pelos valores que pagou.”
Renato Sanches tem passado as últimas épocas com pouca utilização, devido a problemas físicos, algo que Rui Vitória, à distância, vê com desagrado: “Tem tudo aquilo que o futebol moderno requer e precisa, mas é uma pena ver que não joga.”