O poder da Rússia no Conselho de Segurança da ONU e a narrativa "bem montada" sobre a relação com África explica, segundo uma alta responsável da União Europeia (UE), a importante participação dos países africanos na cimeira Rússia-África, em São Petersburgo.
"A Rússia não tem praticamente investimentos em termos comerciais em África, praticamente não exporta para África. O que exporta são sociedades privadas de mercenários, o Wagner, e explora recursos naturais", afirmou a responsável pela política externa europeia para África, Rita Laranjinha, em declarações à Lusa em Lisboa, onde esta semana participou no EurAfrican Fórum.
O que pesa, é que "a Rússia é um membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas" (ONU) e os países africanos têm a perceção de que "é um ator importante na cena internacional" e "não querem perder a possibilidade de manter relações" com Moscovo, considera a diplomata.
Nos últimos anos, mais de metade dos temas na agenda do Conselho de Segurança são temas africanos, lembrou, citando como exemplo do poder da Rússia, o seu voto contra o levantamento do embargo de armas à Somália, que várias vezes votara a favor, depois de Mogadíscio ter apoiado as resoluções contra a guerra na Ucrânia.
"Essa é a preocupação que eles nos transmitem", declarou a responsável pela política externa da UE para África, admitindo que a expectativa é que os países africanos compareçam em peso na segunda cimeira Rússia-África e o fórum económico agendados para 26 a 29 de julho em São Petersburgo.
Moscovo disse que tem confirmada até este domingo a presença de 49 países africanos, muitos representados a nível de chefes de Estado e/ou de Governo, e Rita Laranjinha considera que "possível que esse seja o número".
"Não se sabe exatamente qual é o nível a que os Estados africanos vão estar representados. Temos estado a seguir isso com muita atenção e sabemos que alguns países já indicaram que vão ser representados a nível de chefe de Estado ou de governo. Outros ainda estamos a hesitar", adiantou.
Yelena Kharitonova, investigadora do Instituto de Estudos Africanos, disse recentemente, um relatório intitulado "Rússia e África: Uma Auditoria das Relações" no Valdai Discussion Club, que o ocidente tenta minar as relações russo-africanas, criando "um ambiente desafiador para a segunda cimeira Rússia-África.
A responsável pela política externa europeia para África, contrapõe que a UE “reconhece que qualquer país tem o direito de se relacionar com um Estado terceiro e gerir as suas relações diplomáticas”.
Mas considera importante realçar que a UE é o maior parceiro de África, tanto a nível comercial como de investimento e, admitindo que "tem dificuldade em comunicar as vantagens da sua relação", garante que há um esforço cada vez maior de uma coordenação entre os responsáveis da UE e dos Estados-membros.
A UE está também a desenvolver ações para melhorar essa perceção e vencer as "narrativas bem montadas" de outros atores, como a Rússia.
Antes da cimeira Rússia-África vai por isso divulgar nas redes sociais e imprensa e fazer chegar aos países africanos através da suas representações uma campanha de informação, onde vai mostrar "quais foram as promessas feitas na anterior cimeira e o que realmente foi feito", revelou.
Os dados que vai divulgar "ajudam a desmontar a perceção que existe sobre a importância da relação (Rússia-África) que não é aquela que muita gente pensa", afirmou a responsável europeia.
Cereais vão estar no topo da agenda da cimeira Rússia-África
A consultora Oxford Economics considerou este domingo que o tema do fornecimento de cereais da Rússia e da Ucrânia ao continente africano será um dos principais temas em debate na cimeira Rússia-África, na próxima quinta e sexta-feira.
"O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, poderá ter um gesto de boa vontade relativamente à ajuda alimentar à região do Corno de África e acalmar os nervos dos líderes africanos, e as garantias de exportações alimentares russas para países como o Egito ou a Argélia são também uma possibilidade", escrevem os analistas num comentário à futura cimeira entre a Rússia e os países africanos, marcada para 27 e 28 de julho, em São Petersburgo.
Os analistas apontam, na nota enviada aos clientes e a que a Lusa teve acesso, que é possível “esperar que os preços alimentares sejam um dos principais temas em debate” e que surge poucos dias depois da suspensão do acordo de exportação de cereais pelo Mar Negro.
"A nossa análise sugere que a Iniciativa dos Cereais do Mar Negro teve um papel menos importante no fornecimento de alimentos para os países africanos do que para o resto do mundo", apontam os analistas, vincando, ainda assim, que "uma suspensão prolongada desse acordo pode perturbar os mercados financeiros de matérias primas e aumentar os preços", o que afetaria ainda mais os países africanos, a braços com uma subida generalizada da inflação num contexto em que o estado das finanças públicas da maioria dos países não permite grandes medidas de compensação para a população.
E prosseguem: “Apesar de a inflação estar a abrandar na maioria dos países africanos, não vimos realmente uma deflação, ou seja, uma descida dos preços, por isso as famílias continuam sob pressão devido à crise do aumento do custo de vida, pelo que outro aumento da inflação iria apenas piorar a situação das famílias, que já está pior do que há uns anos atrás.”
A isto junta-se o aumento da dívida pública e dos custos de financiamento dos governos, "o que significa que os países africanos têm menos margem orçamental para, desta vez, aumentar o apoio social às famílias", conclui esta consultora.
Na segunda-feira, a Rússia anunciou que iria suspender o acordo de exportação de cereais pelo Mar Negro a partir de portos ucranianos, argumentando que os compromissos assumidos em relação à parte russa não foram cumpridos.
Diversos países e organizações internacionais, incluindo as Nações Unidas e a UE, condenaram a decisão de Moscovo, lamentando o recuo russo face à prorrogação da Iniciativa dos Cereais do Mar Negro e alertando para as graves consequências junto de países com dificuldades de acesso a bens alimentares.
A Iniciativa dos Cereais do Mar Negro, acordada há um ano pela Rússia, Ucrânia, Turquia e Nações Unidas, permitiu a exportação de quase 33 milhões de toneladas de alimentos de três portos no sul ucraniano, considerados cruciais para a descida dos preços globais e segurança alimentar nos países mais desprotegidos.
As autoridades russas fizeram saber que só voltam ao protocolo se as suas condições forem atendidas, nomeadamente o comércio dos seus próprios produtos agrícolas, prejudicado, segundo frisam, pelas sanções ocidentais.
A ofensiva militar russa no território ucraniano, lançada a 24 de fevereiro do ano passado, mergulhou a Europa naquela que é considerada a crise de segurança mais grave desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).