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Relatos de migrantes na Grécia: “Pisaram até uma senhora no estômago e espancaram-na”

As palavras dos recém chegados às ilhas gregas de Lesbos e Samos, assistidos pela Médicos Sem Fronteiras, expõem a realidade chocante de como são recebidas as pessoas que buscam refúgio na Europa, descrevem a solidão de quem parte de casa em busca de segurança, mas encontra tudo menos isso.

Myrto Mouzaki

SIC Notícias

Médicos Sem Fronteiras

As pessoas em busca de segurança na Europa enfrentam, nas ilhas gregas do Egeu, agressão, tratamento degradante e violência física, incluindo espancamentos, sendo algemadas, revistadas e forçadas a regressar ao mar.

“Escuridão total. Tivemos de embarcar num pequeno barco de borracha. As ondas batiam-nos até à cintura e ficámos todos molhados mesmo antes de começarmos a viagem. Disseram-nos para desligarmos os nossos telefones para que não emitissem luz. Tivemos de permanecer quietos e invisíveis.”

Alika contou à Médicos Sem Fronteiras (MSF) que estava grávida de seis meses quando tentou atravessar o mar pela primeira vez para chegar à Grécia. Quieta e invisível: foi assim que aguentou esta primeira tentativa; foi também assim que foi obrigada a voltar para trás.

“Brilhou uma luz forte sobre nós. Vimos um barco cinzento e no convés estavam cinco homens. O meu corpo congelou e parei de respirar por alguns minutos. (...) Eles tinham uma vara longa e começaram a bater no nosso motor. Atingiram uma pessoa com a vara, que ficou magoada. Depois, amarraram uma corda ao nosso bote e começaram a rebocar-nos muito depressa. Caímos todos uns em cima dos outros. Eu estava com tanto medo pelo meu bebé.”

“Aconteceu tudo tão rápido. As pessoas começaram a gritar por ajuda como se tivessem ficado em silêncio durante tanto tempo que agora expulsavam todos os medos. Mas estava escuro e não havia ninguém."

As palavras de Alika descrevem a solidão de quem parte de casa em busca de segurança, mas encontra tudo menos isso. Este relato é apenas um de muitos recolhidos pela MSF nas ilhas gregas do Egeu a descrever situações que incluem agressões, uso de algemas, revistas, confisco de pertences e envios forçados de volta ao mar.

Práticas violentas nas fronteiras gregas

Fatima, também assistida pela MSF nas ilhas, conta uma história semelhante à de Alika.

“Um homem vestido de preto com o rosto coberto saltou para o nosso barco. Tinha um bastão na mão e começou a bater na pessoa que estava à frente dele. Depois, arrancou o motor e mandou-o borda fora. Fomos deixados no mar sem motor.”

As palavras dos pacientes assistidos pela MSF, recém chegados às ilhas de Lesbos e Samos, expõem a realidade chocante de como são recebidas as pessoas que buscam refúgio na Europa, quando assentam os pés em terra ou mesmo antes disso, em alto mar. Muitas delas fogem da violência e da perseguição nos países de origem, tendo já enfrentado jornadas perigosas e muitas vezes traumáticas para chegar tão longe.

Os desafios continuam quando os requerentes de asilo alcançam terra: a cada passo em frente, arriscam-se a ser intercetados e submetidos a tratamento degradante e violento. Elisabeth* contou às equipas da MSF em Lesbos e Samos que algumas pessoas do grupo em que estava, incluindo uma grávida, foram algemadas e espancadas - “Arrastaram-nas pelo chão… amarraram-nas assim [unindo os pulsos à frente do corpo], amarraram também a gestante. Pisaram até uma senhora no estômago e espancaram-na.”

Tudo isto num cenário em que o apoio humanitário prestado aos recém chegados por terra ou mar é cada vez mais limitado, e o escrutínio independente das práticas de gestão de fronteiras é inexistente.

“A maioria destas pessoas fugiu de países com alta prevalência de violência e perseguição”, sublinha a coordenadora-geral da MSF na Grécia, Sonia Balleron. “Muitas sobreviveram a viagens terríveis, incluindo a ferimentos de guerra, violência sexual e tráfico. Para estas pessoas, já em situação de vulnerabilidade, a violência e os abusos na fronteira agravam ainda mais as consequências médicas e psicológicas das terríveis experiências que enfrentaram.”

Enquanto isso, organizações e agências que tentam providenciar assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade nas ilhas do mar Egeu deixaram de poder levar a cabo atividades e correm o risco de ser processadas. Ao mesmo tempo, as pessoas que chegam à Grécia em busca de segurança e estabilidade enfrentam um tratamento desumano e degradante, incluindo revistas ao corpo nu.

“Revistaram-nos a todos. Às mulheres dentro da vagina, aos homens no ânus, disseram-nos para nos curvarmos. Tocaram-me no corpo todo, no meu peito, nas minhas axilas... Eu tinha escondido o meu dinheiro na minha peruca, mas tiraram-na e encontraram-no”, conta Eleonora.

A resposta da MSF

Nos últimos dois anos, as equipas da MSF em Lesbos e Samos forneceram assistência médica a 7.904 pessoas – 1.520 delas crianças – logo após chegarem às ilhas. Muitas das pessoas recém-chegadas encontravam-se em estado de angústia emocional, além de estarem exaustas, encharcadas, com sede, com fome, a sofrer com a exposição ao calor ou ao frio extremo, cobertas de ferimentos supostamente resultantes de situações de violência ou de tentativas de escapar a agressões.

Entre elas estavam mulheres em estado avançado de gestação, recém-nascidos, menores não acompanhados e pessoas em idades avançadas. Os médicos da MSF providenciaram tratamento a 557 pessoas com lesões físicas; as equipas de saúde mental forneceram 8.621 consultas psicológicas e psiquiátricas. Alguns pacientes ficaram com transtornos de stress pós-traumático, em consequência direta das experiências vividas durante a chegada à Grécia.

As consequências da falta de apoio e escrutínio

Numa ocasião específica, a MSF ajudou sobreviventes de um naufrágio cujo barco virou depois de bater numa rocha perto da costa, ficando uma criança desaparecida. A paciente da MSF Mariam estava no barco e descreveu a experiência:

"Embatemos numa pedra. O barco ficou preso e inclinado. Algumas pessoas caíram à água. Outras seguravam-se, gritando. A gritar mesmo. Eu consegui chegar a terra, não me lembro muito bem como. Sei que nem toda a gente teve a mesma sorte. Já ouviram falar da mulher no campo que não sabe onde está a filha? Como é que uma mãe pode viver com isso? Como é que pode ter tanta dor?”

O corpo da rapariga foi recuperado dois meses depois.

“Instamos o governo grego e os líderes europeus a tomarem medidas imediatas para garantir que as pessoas que procuram proteção na Grécia são tratadas com humanidade e dignidade”, frisa o presidente internacional da MSF, Christos Christou.

“Isso inclui acabar com o clima de impunidade para os perpetradores, em conformidade com o direito europeu e internacional. Também pedimos o fim permanente dos retornos forçados nas fronteiras, a criação de um sistema de monitorização independente nas ilhas do mar Egeu e o reforço das operações de busca e salvamento no mar. Por fim, pedimos que as pessoas que buscam proteção tenham acesso a procedimentos justos de asilo e a assistência médica e humanitária na chegada.”

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