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Atravessar a floresta da morte: "Pensei em vários momentos que o meu coração não ia aguentar"

Este ano, 307 mil pessoas já atravessaram a floresta fronteiriça que liga a Colômbia ao Panamá. Todos os dias, milhares de pessoas vêem-se forçadas a enfrentar riscos, como lesões ou afogamentos, devido às condições geográficas do percurso, ou roubos e violência sexual, por conta dos grupos criminosos que o controlam.

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Com apenas oito dias de idade, o bebé treina pela primeira vez os movimentos das pequenas mãos e pés deitado numa maca da Médicos Sem Fronteiras (MSF). Os olhos (também pequenos) entreabrem-se a um ritmo inconstante para conseguir ver a mãe, Merlande, que devolve ansiosamente o olhar.

Na sala de emergências, o calor é infernal e irremediável – nem o ar condicionado arrefece a temperatura na Estação Temporária de Receção de Migrantes (ETRM) de San Vicente, província de Darién, Panamá.

Merlande é haitiana, tem 39 anos, um corpo robusto e um olhar tímido. Decidiu atravessar a floresta tropical que separa a Colômbia do Panamá com oito meses de gestação, juntamente com duas outras mulheres e os respetivos maridos e duas raparigas jovens. Foi uma viagem de quatro dias por perigosos penhascos e riachos – um longo caminho controlado por grupos criminosos, a única opção que tinha para procurar melhores condições de vida longe do Chile, onde trabalhou como empregada doméstica durante dois anos, após fugir do Haiti.

“O custo de vida é demasiado elevado. É tudo caro: comida, renda. Sem documentos, não se consegue ter um bom trabalho e, embora tenhamos tentado regularizar a nossa situação, foi impossível”, explica Merlande.

Este ano, 307.000 pessoas já atravessaram esta floresta fronteiriça que liga a Colômbia ao Panamá. Todos os dias, milhares de pessoas vêem-se forçadas a enfrentar riscos, como lesões ou afogamentos, devido às condições geográficas do percurso, ou roubos e violência sexual, por conta dos grupos criminosos que o controlam. Tudo para depois chegar ao Panamá e não encontrarem o apoio de que necessitam.

“As organizações humanitárias não têm mãos a medir face ao aumento de pessoas que chegam todos os dias. Nas últimas semanas temos tido dias com quase 2.000 pessoas num só local”, frisa Jose Lobo, coordenador do projeto da MSF na região de Darién.

“Deixaram-nos sem dinheiro. Roubaram-nos na Colômbia e no Panamá”

Várias organizações humanitárias, como a Médicos Sem Fronteiras, e entidades de provedoria da Colômbia e do Panamá já denunciaram vezes sem conta as condições da rota da selva de Darién, nomeadamente as práticas violentas dos grupos criminosos e as condições geográficas propícias a afogamentos e fraturas. Porém, apesar de tudo isto, continua a não haver uma alternativa segura e digna para os migrantes.

“Na selva, roubaram-nos 1300 dólares. Deixaram-nos sem dinheiro. Roubaram-nos na Colômbia e no Panamá. Mas só nos roubaram”, conta Merlande, sabendo que na selva os roubos costumam vir acompanhados de raptos, violações e homicídios.

Merlande chegou com pré-eclampsia, uma complicação da gravidez resultante do aumento da pressão arterial, que levou ao nascimento prematuro do bebé por cesariana. Sam Antoine é panamenho e viverá os primeiros meses de vida a acompanhar a mãe numa jornada até Boston, nos Estados Unidos.

Merlande não é a primeira grávida a atravessar a floresta tropical de Darién: só entre janeiro e julho de 2023, a MSF realizou 673 consultas pré-natais nas Estações Temporárias de Receção de Migrantes (ETRM) onde chegam as pessoas que atravessam a selva.

Para além das grávidas, Priscila Acevedo, médica da MSF, explica que cada vez mais pessoas em situação de vulnerabilidade estão a atravessar a floresta.

“Temos observado um aumento dos diagnósticos de doenças crónicas que pedem tratamentos especializados: pessoas com doenças cardíacas ou com problemas de tensão arterial, mas também pessoas que necessitam de insulina e até pessoas que desmaiam devido ao calor, ou à falta de alimentos, ou porque estão desidratadas, também”.

O estado de saúde não parece ser um fator determinante para as pessoas começarem a viagem até aos Estados Unidos. “Temos até recebido pessoas que não têm mobilidade nas pernas, com paralisia cerebral e demência senil”, acrescenta Priscila.

"É algo que não desejo ao meu pior inimigo”

Nem os diabetes, nem a hipertensão arterial impediram Carlos*, um migrante colombiano com 62 anos, de partir em direção aos Estados Unidos. Sentado na sala de espera do posto de cuidados de Lajas Blancas, também não conseguiu impedir as lágrimas dos olhos ao contar tudo aquilo que enfrentou. “Pensei em vários momentos que o meu coração não ia aguentar e que não era tão forte para resistir a este caminho. É algo que não desejo a ninguém, nem ao meu pior inimigo”, sublinha.

Houve dias em que a única coisa que ingeriu foi água, umas bolachas e os comprimidos que a mulher lhe dava cuidadosamente às horas indicadas.

Para além de Carlos e Merlande, as equipas da MSF conheceram também um afegão que perdeu a perna na guerra, uma família afegã que viajava com uma mulher cega e uma colombiana que atravessou a floresta tropical com uma mão recém operada.

Entre janeiro e julho de 2023, as equipas da MSF forneceram 35.912 consultas médicas. Prestaram apoio a 673 grávidas e 206 pessoas sobreviventes de violência sexual.

Além disso, realizaram-se 1.611 consultas de saúde mental e 6 952 curativos. Há várias organizações ao longo da rota, mas as necessidades atuais ultrapassam as capacidades de assistência.

“Desculpe, onde é que posso ir buscar água potável?”, pergunta, tímida mas esperançosamente uma jovem de 6 anos. A resposta é que não há.

O abastecimento de 30.000 litros não chega para cobrir as necessidades dos mil migrantes que chegam todos os dias à comunidade indígena de Bajo Chiquito e à ETRM de Lajas Blancas. Esta estação conta com 51 cabanas de madeira, cada uma para cinco pessoas. Contas feitas, tem capacidade para 255 migrantes, mas é comum ter de abrigar entre 1.000 a 1.500 pessoas.

Este cenário repete-se em San Vicente, outra ETRM que tem quatro módulos alargados com capacidade para 136 pessoas, ou seja, para 544 no total. Juntas têm capacidade para 799 migrantes, mas chegam ao Darién quase 2.000 por dia.

Tudo isto, sem ter em conta que há migrantes que ficam por mais do que uma noite. “Também tem havido um aumento da quantidade e da gravidade de pneumonias e diarreias. As condições não são idiais para dormir, nem para prevenir doenças”, explica a médica Priscila.

O perigo dos “bilhetes humanitários”

Segundo as equipas da MSF, a situação tornou-se mais complexa desde fevereiro passado, quando um autocarro sobrelotado com pessoas migrantes se despenhou no Panamá, a caminho da fronteira com a Costa Rica. Morreram 39 migrantes que estavam a ser transferidos da ETRM de Darién para a estação de Planes de Gualaca, no outro lado do país.

No dia do acidente, descobriu-se que alguns bilhetes gratuitos – muitas vezes chamados “bilhetes humanitários” – para pessoas que não tinham como pagar o preço da viagem, eram, na verdade, bilhetes para o chão do autocarro.

Para evitar mais acidentes por sobrelotação, as autoridades panamenhas proibiram recentemente estas vagas gratuitas.

Em abril, a MSF conheceu Kelly, uma migrante colombiana de 33 anos, que iniciou a travessia logo após ter sido operada a uma fratura na mão. O médico indicou que devia retirar os parafusos uma semana depois da cirurgia, porém, quando chegou à estação de receção de San Vicente, Kelly tinha já a mão infetada. “Levaram-me para o hospital e disseram-me que tinha de ver um ortopedista e fazer uma radiografia, mas por medo que me deixassem ali, sem dinheiro e sem maneira de comunicar, não fui”, explica.

Prometeram a Kelly que existia um serviço de transporte diário para pessoas em situação de vulnerabilidade: “um autocarro para pessoas que não tinham dinheiro - puseram-me numa lista, mas já não havia lugares. Fiquei aqui uma semana à espera”, recorda.

“Apareceram 30 homens armados e tentaram raptar-nos”

Viajava com uma amiga e os três filhos dela. Depois de terem sido atacadas duas vezes durante o caminho, nenhuma tinha como pagar os 40 dólares para chegar à fronteira com a Costa Rica.

“Do nada, apareceram 30 homens armados que falavam outra língua e tentaram raptar-nos. Eu consegui pegar no meu filho de seis anos e começámos a correr. Ainda dispararam tiros contra mim”, conta a amiga de Kelly.

“Mas à segunda vez já não conseguimos escapar. Saíram do outro lado do rio enquanto tentávamos atravessar. Para onde podíamos correr?”. Sobraram apenas alguns pertences e um telemóvel, que os criminosos não viram.

Atualmente, existe um serviço de transporte gratuito a cada 10 dias para transportar pessoas que estão há mais de uma dezena de dias paradas numa ETRM. Às vezes, abrem vagas gratuitas para pessoas em situações mais vulneráveis, mas os critérios não são totalmente claros.

José construiu as muletas com um par de ramos

José Rafael Cumare caiu na selva e partiu o calcanhar. “Uma hora depois de atravessar para o Panamá, tive de mergulhar numa cascata, mas debaixo de água havia uma pedra e magoei-me”, relata José, deitado num quarto enquanto tratam a inflamação na perna.

Depois desse incidente, gatinhou e rastejou, até construir umas muletas com um par de ramos, que o ajudaram a continuar a rota por mais 13 dias.

A Médicos Sem Fronteiras volta a instar as autoridades colombianas e panamenhas a garantirem rotas seguras e dignas para os migrantes. Migrar não é um crime. Apela, além disso, para a necessidade de ampliar e reforçar a cobertura das necessidades básicas nas comunidades de acolhimento e nas ETRM, garantindo proteção, espaços dignos para pernoitar, acesso a água potável e alimentação, condições adequadas de higiene e saneamento e o acesso à justiça.

*Nome alterado para proteger a identidade

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