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Desnutrição e malária em Angola: “Quando a Rosa foi internada tinha bolhas no corpo todo”

A desnutrição e a malária são comuns em comunidades remotas e em situação de vulnerabilidade em Angola, especialmente durante picos de seca ou chuvas intensas. As mulheres e as crianças são as mais afetadas. Florença e Rosa são dois desses casos.

Mariana Abdalla

SIC Notícias

Médicos Sem Fronteiras

A Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalhou ao longo do último ano em colaboração com as autoridades de saúde locais para reduzir o fardo destas doenças nas províncias de Huíla e de Benguela.

“É difícil chegar ao posto de saúde, levo duas horas a caminhar”, conta Domingas Luciana, à saída de uma consulta com a MSF na comunidade de Camassissa, uma área remota da província de Huíla, no Sudoeste de Angola. Uma das duas filhas de Domingas Luciana, Florença, estava com desnutrição aguda grave e testara positivo para a malária. “A Florença nasceu muito magra e não melhorava”, explica ela.

A criança ingressou no programa nutricional em regime ambulatório e recebeu tratamento também para a malária. Em apenas três semanas, a mudança no estado de saúde dela foi clara.

“Desde que comecei a trazê-la a esta clínica móvel e ao hospital para seguimento, a Florença tem estado a melhorar. Sinto-me muito feliz por a minha bebé ter recuperado.”

Na sequência de três anos consecutivos de seca grave em Angola e do aumento dos preços dos alimentos, em 2021 agências da ONU alertaram que estes factores podiam ter impacto na desnutrição infantil, especialmente nas províncias localizadas no Sul do país. A MSF levou a cabo avaliações da situação no terreno e iniciou atividades médicas em diversos locais de Angola em 2022.

Em Huíla, as avaliações nutricionais rápidas não revelaram uma taxa alarmante de desnutrição e a seca não era tão grave quanto fora previsto. Porém, as taxas de malária eram muito altas e as comunidades remotas enfrentavam muitos desafios para aceder a cuidados e informação de saúde.

Chegar a mães e crianças em comunidades remotas

Como acontece no caso de Florença, a desnutrição e a malária afetam as crianças frequentemente ao mesmo tempo. Esta doença mortal relacionada com os mosquitos é altamente prevalente em Angola e representa quase 80 por cento das mais de 29 800 consultas médicas feitas pela MSF entre fevereiro e junho deste ano nos municípios de Chipindo e de Cuvango, na província de Huíla.

Apesar de os riscos desta doença serem evidentes, particularmente para as crianças mais novas, o desafio em algumas áreas de Huíla foi fazer o diagnóstico rapidamente e iniciar bem cedo o tratamento.

“Muitas comunidades aqui vivem muito longe de uma estrutura de saúde”, refere a supervisora da MSF em promoção de saúde e envolvimento comunitário em Cuvango, Isabel Severino.

Para chegar às pessoas que vivem em locais remotos, equipas da MSF levaram a cabo clínicas móveis e, em simultâneo, trabalhadores de saúde comunitária receberam formação para tratar casos ligeiros de malária e outras doenças nas comunidades a que pertencem, assegurando que as crianças eram levadas a consultas de seguimento na rede de 17 estruturas de saúde a que a MSF prestou apoio até junho.

“Habitualmente, são as mulheres que me procuram porque são elas que cuidam das crianças. Trato dos filhos delas como faço com os meus”, explica Joana Mandavela, trabalhadora de saúde comunitária de Cuvango.

A MSF também providenciou apoio a um sistema de encaminhamentos com motociclos, conhecidos localmente como “kaleluias”, para transportar as mães e os filhos delas, tendo em conta que a mobilidade em comunidades remotas é frequentemente difícil. Isto permitiu que 300 pacientes acedessem a cuidados adicionais necessários.

Apoiar a recuperação das crianças em estruturas de saúde

Crianças com desnutrição aguda moderada e grave ingressaram num programa nutricional em regime ambulatório. Aí receberam pumply nut – o nome de marca de um tipo de alimento terapêutico pronto a usar –, assim como kits com artigos como cobertores, copos e sabão. E as crianças que se encontravam em estado crítico foram admitidas na unidade nutricional hospitalar em regime de internamento. No total, 710 crianças receberam tratamento para desnutrição aguda.

Rosa, com dois anos, é uma dessas crianças. “Quando a Rosa foi internada no Hospital Municipal de Cuvango, tinha bolhas no corpo todo”, descreve a psicóloga da MSF Isabel Zua.

“Ela passava muito tempo na cama e tinha perdido alguma mobilidade. Por isso, ao fim de umas semanas, conforme ela começou a ficar melhor, iniciámos também o trabalho de psicoestimulação com ela. Após duas sessões já conseguíamos ver uma diferença enorme.”

Profissionais de psicologia como Isabel Zua trabalharam para restabelecer a mobilidade, cognição, confiança e os laços mãe-filho após uma criança se ter encontrado em estado crítico no hospital durante um longo período de tempo.

“Ela está muito melhor, e estou muito feliz”, regozija-se a mãe de Rosa, Paulina Cassombu.

Construir capacidade e estruturas para o longo prazo

Para lá do trabalho médico desenvolvido, as equipas da MSF de logística e de água e saneamento também reabilitaram e fizeram melhorias em estruturas de saúde e em áreas de gestão de resíduos, além de levarem a cabo outros projetos de construção como a edificação de uma ponte que fora destruída e era crucial para ligar mais de dez aldeias remotas ao centro de saúde de Galangue.

Durante os últimos meses, foram feitas formações com dezenas de profissionais recrutados localmente, com trabalhadores do Ministério da Saúde e com trabalhadores de saúde comunitária, nas estruturas de saúde onde a MSF estava a prestar apoio, centrando-se sobretudo em malária, desnutrição e na gestão de pacientes em estado grave.

As equipas da MSF terminaram as clínicas móveis em Huíla no final de maio e, ao longo de junho, entregaram o apoio prestado em estruturas de saúde locais ao Ministério da Saúde. Como parte desta entrega, a MSF procedeu também à doação de materiais de logística, motociclos e triciclos motorizados para garantir que o encaminhamento de pacientes continua a ser feito.

“A melhor forma de prevenir doenças a longo prazo é deixando algum conhecimento e ferramentas que ajudam a transformar comportamentos e hábitos nestes profissionais e na população local”, sustenta o coordenador de emergências da MSF em Huíla, Luis Montiel.


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