Esquecidos

O medo de quem vive encurralado pela violência no Haiti

Pessoas em grande vulnerabilidade na capital do Haiti, Port au Prince, estão imersas numa espiral de violência e de insegurança, a viver sob a ameaça de balas perdidas e de raptos, além de enfrentarem precariedade económica.

Alexandre Marcou

SIC Notícias

Médicos Sem Fronteiras

Quase todos os dias, equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) operam clínicas móveis para tratar centenas de crianças, mulheres, homens e pessoas idosas que estão encurraladas nos bairros onde vivem.

Nos primeiros quatro meses de 2023, as clínicas móveis da MSF assistiram o total de 7 781 pacientes e distribuíram mais de 300 mil litros de água potável nas zonas de Delmas, Bel-Air e Bas Bel-Air, onde os residentes têm sido especialmente afetados pela violência que assola a capital.

Outros 300 mil litros de água potável e 607 kits de higiene foram distribuídos à população deslocada pela violência nos bairros de Fort National e em Poste Marchand em fevereiro passado.

Encurralados pela violência em Port au Prince

Uma série de acontecimentos políticos, sociais e económicos resultaram numa crise complexa, multidimensional e humanitária. O acesso a serviços essenciais, incluindo cuidados médicos e cuidados em saúde mental, assim como água e saneamento, está gravemente comprometido em toda a cidade de Port au Prince, em particular nos bairros mais afetados pela continuada violência.

O conflito entre grupos armados rivais está a tornar muito difícil que as pessoas consigam deslocar-se na cidade e muita da população vive em situações de extrema precariedade.

Pelo menos quatro vezes por semana, três veículos da MSF transportam equipas multidisciplinares – com profissionais médicos, de enfermagem, de psicologia, de promoção de saúde, de assistência ao parto e especialistas em água –, assim como materiais médicos, para providenciar tratamento a pacientes que se encontram em áreas afetadas pela violência urbana na zona central de Port au Prince.

O medo de ser atingido por uma bala perdida

“As clínicas móveis são necessárias num contexto como Port au Prince”, explica o coordenador-geral da MSF no Haiti, Michele Trainiti. Muitas estruturas de saúde em alguns dos bairros mais assolados pela violência estão fechadas. As que funcionam parcialmente são difíceis de alcançar e demasiado caras para muitas pessoas. A população nestas áreas tem medo de se deslocar na cidade devido à violência e à insegurança, em que se inclui um risco elevado de ser alvejado por balas perdidas, além de que as opções de transporte são muito limitadas.

Acresce que as unidades públicas de saúde enfrentam frequentemente escassez de pessoal, de medicamentos e abastecimentos regulares, pelo que mesmo que as pessoas consigam ultrapassar os obstáculos para chegar a um centro de saúde, muito provavelmente não poderão receber o tratamento de que necessitam.

“Apesar de não serem perfeitas, as clínicas móveis são flexíveis e adaptáveis. Permitem-nos levar cuidados de saúde para mais próximo dos pacientes em zonas da cidade afetadas pela violência. E assim conseguimos ultrapassar algumas das barreiras que as pessoas estão a enfrentar para terem acesso a cuidados médicos”, frisa Michele Trainiti.


O consumo de substâncias psicoativas para fugir à realidade

A violência pela qual as pessoas estão a passar e a testemunhar “tem um impacto significativo na saúde mental”, avança por seu lado o psicólogo da MSF Camille Dormetus, que integra as equipas das clínicas móveis.

“O som das balas, o medo de sofrer um ataque dos grupos armados, a morte de familiares são partes da experiência traumática vivida pelos nossos pacientes. Vi muitas pessoas com ansiedade, depressão, com distúrbios do sono ou hipervigilância; algumas a consumirem substâncias psicoativas para escaparem à realidade que estão a viver.”

A médica Engleed Emeran, que também integra as clínicas móveis da MSF, conta que observa “entre 50 a 70 pacientes num dia normal, principalmente mulheres jovens com infeções sexualmente transmissíveis, mulheres idosas com dores crónicas e hipertensão, e crianças pequenas com infeções respiratórias”.

“O desafio com as clínicas móveis é não conseguirmos levar a cabo métodos mais avançados de diagnóstico, mas é a única forma para muitas pessoas terem acesso a cuidados de saúde e a medicamentos gratuitos”, explica ainda a médica.

“As necessidades são tão extremas que mesmo a provisão de resposta ao mais básico é essencial”, conclui.

“As necessidades são a uma escala enorme”

Nestas clínicas móveis, as equipas médicas prestam assistência também a numerosos casos de sarna, a morbidade mais comum vista em todas as clínicas da MSF. A sarna é uma doença de pele contagiosa causada por pequenos ácaros que se enterram na pele e constitui sintoma de viver em condições insalubres. É particularmente comum em partes da cidade onde o acesso a água é limitado e as estruturas de saneamento são desadequadas.

“Com as nossas clínicas móveis, prestamos cuidados de saúde ao mesmo tempo que providenciamos educação para a saúde, e encaminhamos pacientes com casos mais complicados para outras estruturas de saúde. Também fornecemos água potável, e reparamos instalações de saneamento onde estes serviços existem. Estamos sempre a avaliar que assistência adicional podemos disponibilizar, mas as necessidades são a uma escala enorme”, sublinha o coordenador-geral da MSF no Haiti.

As clínicas móveis da organização médica-humanitária foram suspensas entre setembro e dezembro de 2022, em parte devido às manifestações maciças (Peyi Lòk) e em parte por causa do surto de cólera que assolou o país. No início do surto, as equipas da MSF usualmente alocadas às clínicas móveis foram mobilizadas para a resposta à cólera, montando novas estruturas de tratamento e ativando outras medidas de base comunitária para enfrentar o surto. A MSF prestou tratamento a mais de 16 829 pacientes em colaboração com as autoridades haitianas, entre outubro de 2022 e abril de 2023.

Apesar de as clínicas móveis estarem agora de novo completamente operacionais, estão a fazê-lo num momento em que os níveis de violência se encontram extremamente elevados em Port au Prince, o que faz com que a continuada flexibilidade e adaptabilidade permaneçam uma prioridade para as equipas da MSF na capital do Haiti.

A organização médica-humanitária trabalha neste país há 30 anos, prestando cuidados médicos de qualidade e gratuitos a toda a população e permanece determinada em continuar a providenciar este apoio. Só em 2022, as equipas móveis da MSF fizeram 17 800 consultas.


Esquecidos é um projeto da SIC Notícias e da Médicos Sem Fronteiras que dá espaço aos que vivem situações de vulnerabilidade. Histórias de quem fica marcado por conflitos armados, catástrofes, migrações ou falta de acesso a cuidados de saúde. Testemunhos de quem é quase sempre silenciado. Muitas vezes esquecido.

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