Catherine chegou com a nora à clínica de Sahavato, no distrito de Nosy Varika, no Sudeste de Madagáscar, região onde a Médicos Sem Fronteiras (MSF) presta assistência com várias unidades de saúde. A jovem estava febril. “Ela está muito fraca e muito magrinha. Aqui as pessoas trabalham [a terra] o dia inteiro... todas estas longas horas de trabalho, talvez seja isso que nos põe doentes, ou talvez seja a falta de comida”, explica.
As equipas da MSF estão a observar taxas alarmantes de desnutrição em vários distritos no Sudeste de Madagáscar, com as famílias na zona a enfrentarem uma crise tripla de insegurança alimentar, malária e eventos climáticos extremos.
Entre janeiro e abril apenas, foram admitidas mais de 1.200 crianças menores de 5 anos com desnutrição aguda grave nos centros de tratamento apoiados pela MSF. Cerca de 75 por cento destas crianças também tinham malária.
E o ciclone Freddy, que atingiu o país a 21 de fevereiro – causando a morte a 17 pessoas –, agravou ainda mais a situação: foi o mais recente de uma série de ciclones que pioraram os problemas de saúde em muitas comunidades vulneráveis na região. O ciclone Freddy ficará muito provavelmente registado na história como o ciclone tropical com mais longa duração.
Clima extremo
“A vida aqui ficou mesmo má”, conta Joella, de 19 anos, que está grávida e recebe cuidados pré-natais numa clínica da MSF em Ambodirian’i, no Sudeste de Madagáscar. “Há tantas coisas que foram destruídas [pelos ciclones recentes], e há também muitas doenças. O edifício do hospital ficou destruído”, acrescenta.
Joella e muitas outras pessoas que recebem cuidados de saúde nas instalações médicas da MSF descrevem os impactos devastadores que os eventos climáticos extremos tiveram na capacidade para cultivar e colher arroz. O arroz é a principal colheita alimentar de Madagáscar e é vital para a segurança económica da população, gerando 41 por cento dos rendimentos dos agregados familiares em todo o país.
Outra mulher jovem, Genecia, explica como os ciclones destruíram por completo o arroz que fora cultivado: “A nossa plantação de arroz foi inundada, ficou cheia de areia. O nível da água subiu imenso.” Genecia chegou à clínica apoiada pela MSF com os filhos gémeos, que receberam tratamento para a desnutrição.
Pelo menos 80 por cento das plantações no Sudeste de Madagáscar foram destruídas por ciclones em 2022. Avaliações preliminares feitas pelo Governo do país e por organizações humanitárias após a passagem do ciclone Freddy estimam que 148.000 pessoas precisam de assistência humanitária.
No projeto médico da MSF dedicado a grávidas e lactantes, muitas mulheres descrevem o trabalho árduo que é necessário no cultivo e colheita do arroz. Dão conta da realidade de partir o coração que é ver todo aquele trabalho desperdiçado quando a região é atingida por um ciclone ou chuvas intensas. “Tenho medo de ficar fraca”, desabafa Genecia, temendo que a falta de acesso a comida tenha impacto na capacidade em trabalhar longas horas no campo de arroz da família.
Os eventos climáticos extremos têm impactos além da destruição das colheitas. Quando as estradas e as pontes são danificadas pelos ventos e pelas chuvas, as pessoas nas zonas afetadas enfrentam grandes dificuldades para aceder a cuidados de saúde.
Madagáscar tem uma das redes rodoviárias menos desenvolvidas no mundo. Muitas pessoas que chegam às instalações de saúde da MSF tiveram de fazer jornadas por estradas muito perigosas ou caminhos inundados. Para muitas, estas deslocações de risco impedem-nas de procurar cuidados médicos. Por isso, equipas da organização médica-humanitária ativaram clínicas móveis com recurso a barcos, carros e motos, de forma a garantir que comunidades remotas conseguem obter cuidados em segurança.
Insegurança alimentar
Devido aos impactos de múltiplos ciclones nas plantações, a quantidade de alimentos armazenados está a diminuir. Na véspera de o ciclone Freddy ter atingido Madagáscar, equipas da MSF observaram pessoas em comunidades rurais a forragear frutos e vegetais antes de a tempestade os poder destruir.
No distrito de Ikongo, no Sudeste da ilha, um número cada vez maior de famílias está a levar os filhos desnutridos à clínica apoiada pela MSF na vila de Ifanirea.
“As pessoas sabem que a MSF está aqui para tratar crianças menores de 5 anos com desnutrição. E estão muito motivadas em trazer aqui os filhos”, conta a responsável de enfermagem da MSF Olga. Das quase 2 200 crianças rastreadas para desnutrição em Ikongo durante as primeiras duas semanas de abril passado, 5 por cento estavam com desnutrição aguda grave.
Em Nosy-Varika, uma das áreas costeiras mais assoladas pelo ciclone Freddy, a MSF e as autoridades locais reforçaram os rastreios de desnutrição em resposta ao agravamento da situação de segurança alimentar. Entre fevereiro e março, as admissões de crianças menores de 5 anos com desnutrição aguda grave mais do que duplicaram.
Na sequência do ciclone, a MSF ampliou as atividades de resposta à desnutrição, as consultas e está também a reforçar o apoio prestado às comunidades, expandindo a cobertura médica a novas localizações em áreas de ainda mais difícil acesso.
Malária
A época dos ciclones e a época “magra” (o período entre colheitas quando o armazenamento de alimento decresce) também coincidem com a época da malária. Esta doença é um grande problema de saúde em Madagáscar e uma das cinco maiores causas de morte para a população do país.
“A malária já não é como costumava ser. Agora é muito grave. Antigamente só acontecia às crianças... mas atualmente afeta toda a gente”, frisa Masy, uma mulher idosa, sentada na zona de espera da clínica de Sahavato, onde a MSF presta apoio, que está localizada no distrito de Nosy Varika, Sudeste de Madagáscar.
A doença tende a aumentar em muitas partes de Madagáscar durante a época das chuvas, quando é mais frequente haver águas estagnadas – ambiente propício para a reprodução de mosquitos. No pico da época, equipas da MSF nos distritos do Sudeste da ilha levam a cabo atividades de teste e rastreio da malária. Em algumas comunidades, 90 por cento das crianças com desnutrição aguda que a MSF está tratar também testaram positivo para malária.
É previsto que as chuvas intensas e cheias continuem a agravar-se em Madagáscar, com cientistas climáticos a alertarem para um provável aumento dos ciclones tropicais das categorias 4 e 5. Isto vai fazer com que a situação de vulnerabilidade seja cada vez maior para muitas pessoas, em especial para os 80 por cento da população que vivem nas áreas rurais e para os 80 por cento que vivem no limiar da pobreza em locais como no distrito de Nosy-Varika.
“Um quarto das crianças nesta área sofrem com desnutrição aguda”, sublinha o coordenador-geral da MSF em Madagáscar, Brian Willett. “Esta crise catastrófica vai continuar, com os repetidos choques climáticos e a pobreza de longa duração, se não virmos uma ação política e coletiva consistente”, sustenta.