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“A situação em Kivu Norte é alarmante”, o alerta urgente da Médicos Sem Fronteiras

A organização médica-humanitária avisa que as equipas que trabalham nesta região da República Democrática do Congo têm constatado que as pessoas deslocadas em comunidades remotas, que ficaram isoladas pelos combates, estão expostas a numerosos riscos de saúde e a atual resposta é largamente desadequada.

Michel Lunanga

SIC Notícias

Médicos Sem Fronteiras

Está a desenrolar-se um desastre humanitário em Kivu Norte, no Leste da República Democrática do Congo (RDC), onde perto de um milhão de pessoas tiveram de fugir de casa nos últimos 12 meses para escapar aos combates ligados ao ressurgimento do grupo armado M23. Esta crise enorme agrava ainda mais a situação humanitária já crítica na província.

Equipas da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) a trabalharem nesta região têm constatado que as pessoas deslocadas e que vivem em comunidades remotas que ficaram isoladas pelos combates estão expostas a numerosos riscos de saúde. A organização médica-humanitária alerta que a atual resposta é largamente desadequada e insta a comunidade internacional e as autoridades do país a reforçarem urgentemente os esforços para atender às necessidades da população.

“A situação em Kivu Norte é alarmante”, frisa o representante da MSF na RDC, Raphaël Piret. “Basta ver as condições terríveis em que as pessoas estão a viver nos arredores da capital da província, Goma, para perceber que a resposta que está a ser dada não satisfaz as necessidades existentes, apesar de haver muitas organizações humanitárias a trabalhar no Leste da RDC”, acrescenta.

Precárias condições de vida

Só nos meses recentes, centenas de milhares de pessoas fugiram das casas e aldeias onde viviam para se resguardarem com outras famílias noutros locais ou instalaram-se em acampamentos informais. Em volta de Goma, abrigos improvisados com telas plásticas ou redes mosquiteiras estendem-se no horizonte até onde os olhos alcançam. Outras pessoas abrigaram-se em igrejas e escolas.

“Chegámos aqui em junho do ano passado e instalámo-nos numa igreja abandonada em Kanyaruchinya com outras cerca de 150 famílias”, conta Celestine, de 65 anos. “Ao longo dos últimos oito meses, o nosso dia a dia tem sido uma série de dificuldades – para dormir, comer e termos o que vestir. Só foi feita uma distribuição de alimentos desde o início deste ano e, como o meu nome não estava na lista, nem recebi nada. Fazemos o melhor que podemos com o que encontramos nos campos em redor.”

No último ano foram construídos nos arredores de Goma cerca de três mil abrigos, onde estão atualmente umas 15 mil pessoas – são muito poucos comparando com a escala enorme das necessidades.

“É uma gota no oceano face às centenas de milhares de pessoas deslocadas que estão acampadas à volta das portas da cidade”, nota o coordenador de projeto da MSF em Goma, Abdou Musengetsi. “As famílias estão há meses à mercê das chuvas, de epidemias e de violência, como é demonstrado pelo número preocupante de casos de violência sexual que tratamos todos os dias nas nossas instalações médicas”, refere.

Equipas da MSF têm estado a trabalhar em locais informais onde as pessoas se instalam à volta de Goma, desde maio de 2022. São providenciados cuidados médicos gratuitos, a distribuição de água potável por camiões cisterna e é feita a construção de latrinas e de chuveiros.

Mesmo assim, muito está por fazer. No acampamento informal de Bulengo, a 10 quilómetros para oeste de Goma, há apenas uma latrina para quase 500 pessoas: é menos de um décimo do que é necessário para atender aos padrões básicos de emergência humanitária. E no acampamento vizinho de Lushagala, as pessoas deslocadas estão a sobreviver com apenas pouco mais de um litro de água limpa por dia, muito abaixo dos recomendados 15 litros de água por dia.

Abrigos desadequados e sobrelotados e a falta de água limpa e de latrinas criam as condições ideais para a propagação de doenças. Nos meses recentes, registaram-se surtos de sarampo e de cólera em locais a norte de Goma, no território de Nyiragongo, e a situação de saúde em Bulengo e em Lushagala é agora crítica, com casos suspeitos de sarampo e de cólera a multiplicarem-se nas últimas semanas.

“Só em Bulengo, em março, tratámos quase 2.500 pacientes com sintomas de cólera e mais de 130 crianças com sarampo”, detalha Abdou Musengetsi.

Raphaël Piret avalia que “a situação é chocante”. “As nossas equipas trabalham sem parar para dar resposta à cólera e a um número cada vez maior de casos de sarampo, mas estão totalmente sobrecarregadas. Face ao desastre humanitário e de saúde que se desenrola à frente dos nossos olhos, o reforço da assistência prestada às pessoas deslocadas – tanto em Goma como noutros locais – é urgente”, sustenta o representante da MSF na RDC.

É estimado pelas Nações Unidas que há presentemente 2,5 milhões de pessoas deslocadas em toda a província de Kivu Norte. Com a continuação dos combates, ainda mais pessoas poderão ver-se forçadas a fugir e a precisar de ajuda para sobreviver.

“Todas as entidades envolvidas na resposta humanitária têm de ser mais reativas e flexíveis para se conseguir colmatar rapidamente as necessidades das pessoas e ajustar a prestação de ajuda aos movimentos da população, que estão sempre a mudar”, explica ainda Raphaël Piret.

Acesso restrito a cuidados de saúde

A norte de Goma, equipas da MSF estão também a observar as consequências da crise que afeta os territórios de Masisi, Rutshuru e Lubero. Como as frentes de combate mudaram, a maior parte das principais vias para chegar à região foram cortadas. As ligações de transportes para esta região agrícola, conhecida como “os celeiros da província”, são cruciais para o comércio em Kivu Norte. Isolados do resto da província, os habitantes não têm conseguido vender as colheitas nem comprar mais do que alguns produtos essenciais, cujos preços duplicaram.

Muitas instalações médicas ficaram sem medicamentos devido a problemas de abastecimento. No território de Rutshuru, por exemplo, alguns centros de saúde não recebem quaisquer medicamentos há meses. Nestes territórios, aceder a cuidados de saúde já era difícil e agora é um desafio ainda maior, porque faltam estruturas de saúde a funcionar e devido ao custo dos cuidados médicos, que é incomportável para muitas pessoas na atual crise económica.

“Com a falta de meios financeiros, a maioria da população simplesmente já não consegue aceder a cuidados de saúde”, avança a coordenadora de projeto da MSF em Rutshuru, Monique Doux. “As pessoas têm de escolher entre comer ou obter tratamento médico. E mesmo quem pode pagar pelo tratamento ainda tem de encontrar uma instalação de saúde que esteja a funcionar, o que pode levar várias horas de caminhada”, detalha.

A subida dos preços e a deterioração no acesso a cuidados de saúde estão a fazer com que a insegurança alimentar se agrave nesta província da RDC. Mais de um terço da população de Kivu Norte – três milhões de pessoas – estão atualmente em risco de insegurança alimentar, de acordo com dados das Nações Unidas.

“Nos centros de saúde onde prestamos apoio no território de Rutshuru, tratámos mais de 8.500 crianças desnutridas em 2022, o que é quase 70 por cento mais do que em 2021”, salienta Monique Doux.

“Não há tempo a perder”

No território de Rutshuru, assim como nos de Lubero e de Masisi, há uma falta gritante de organizações a prestar a tão necessária ajuda. “Parece que as pessoas daqui foram abandonadas. Há meses, que a MSF é a única organização humanitária a trabalhar no território de Rutshuru, mas as necessidades dos habitantes vão muito além da nossa capacidade de resposta”, refere ainda.

Por seu lado, Raphaël Piret sublinha que “não há tempo a perder”. “A comunidade de assistência e as autoridades têm de redobrar os esforços para garantir que a ajuda humanitária chega às pessoas que dela precisam, onde quer que estejam, e, ao mesmo tempo, todas as parte envolvidas no conflito têm de assumir o compromisso de facilitar o acesso das organizações humanitárias à população”, insta o representante da MSF na RDC.

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