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"As nossas crianças estão a adoecer com cólera, sarna e leishmaniose"

O campo Al-Eman, no Noroeste da Síria, abriga 2.130 pessoas, a cujas necessidades equipas da Médicos Sem Fronteiras estão a dar resposta. O sismo teve grande impacto no sistema de água e saneamento, já gravemente comprometido pela guerra.

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SIC Notícias

Médicos Sem Fronteiras

Jindires, em tempos uma cidade magnífica localizada no Noroeste da Síria, perto da fronteira com a Turquia, está reduzida a escombros, com as cicatrizes expostas de uma guerra implacável e do recente terramoto. No Noroeste da Síria, nove em cada dez pessoas que foram de novo forçadas a deslocar-se para campos devido aos terramotos, tinham já antes sido forçadas pela guerra a fugir de casa pelo menos uma vez.

Muitas destas pessoas encontraram agora abrigo temporário nos campos para deslocados internos, mas estão a enfrentar uma nova dura realidade, sem estabilidade nem o que necessitam para sobreviver, especialmente em Jindires. O terramoto ocorrido em fevereiro teve um claro impacto no sistema de água e saneamento da cidade, o qual estava já gravemente comprometido pelos 12 anos de guerra.

"Os meus filhos ficaram com cicatrizes que vão demorar anos a sarar"

O campo Al-Eman, recentemente montado em Jindires, abriga 2.130 pessoas, a cujas necessidades equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) estão a dar resposta. Emm Hassan é uma dessas deslocadas internas, tem cinco filhos e foi forçada a deslocar-se pelo terramoto depois de a casa que habitava ter colapsado. Já antes tivera de partir de onde vivia, na zona ocidental de Alepo, por causa da guerra.

“Perdemos tudo, incluindo a nossa vida normal. A vida no campo é terrivelmente difícil”, descreve Emm Hassan. “Dado o acesso muito limitado a água potável, e com a falta de saneamento e de instalações de higiene, as nossas crianças estão a adoecer com cólera, sarna e leishmaniose. Todos os meus cinco filhos contraíram leishmaniose e ficaram com cicatrizes na cara que vão demorar anos a sarar.”

Quando as pessoas chegaram ao campo Al-Eman, confrontaram-se de imediato com a escassez de água potável. Cada pessoa tinha nove litros de água disponíveis, quando os padrões internacionais requerem 20 litros por dia. Não há latrinas suficientes – apenas uma para cada 90 pessoas. Além disso, não existe um sistema de esgotos adequado para a eliminação dos resíduos.

“As infraestruturas de água e de saneamento nos campos para as novas pessoas deslocadas encontram-se gravemente limitadas”, frisa o coordenador médico da MSF na Síria, Halim Boubaker. “A falta de água potável e o uso de fontes de água contaminada aumentam os riscos de doenças relacionadas com a água como a cólera e a hepatite. E o facto de as latrinas serem insuficientes ou inadequadas compromete a higiene e a privacidade, além de aumentar os riscos de doenças transmissíveis como a sarna”, explica.

A propagação da sarna

As condições precárias de vida nos campos para pessoas deslocadas criaram um ambiente conducente à transmissão de sarna, uma doença de pele contagiosa que é causada pela infestação de ácaros. A MSF e entidades parceiras detetaram em maio, através das clínicas móveis que estão a operar nestes locais e das atividades de saúde comunitárias, um aumento significativo de sarna no Noroeste da Síria.

Em Afrin, numa avaliação feita em dez campos para deslocados internos, que abrigam cerca de 13.000 pessoas, foram identificados 3 600 casos de sarna.

Esta avaliação, conduzida pela Al-Ameen, organização síria parceira da MSF, detetou que mais de metade dos casos eram em crianças com menos de 10 anos. As equipas da MSF analisaram as principais razões por trás da propagação desta doença, concluindo que se deve sobretudo aos esgotos a céu aberto e à contínua escassez de água nos acampamentos afetados.

As atividades de água, de saneamento e de higiene são uma das principais prioridades nos esforços da resposta de emergência da MSF para prevenir a propagação de doenças em cerca de cem campos para pessoas deslocadas.

As equipas da organização médica-humanitária distribuíram já mais de oito mil metros cúbicos de água potável, instalaram mais de mil tanques de água e 130 latrinas móveis, e providenciaram a manutenção de 620 latrinas e 90 instalações de chuveiros. Acresce a distribuição de 111 000 artigos de ajuda humanitária, em que se incluem kits de cozinha, kits de artigos de higiene e kits menstruais.

A luta de uma década

Além dos impactos causados pelo terramoto e pela guerra no sistema de água e de saneamento, a Síria sofre uma cada vez mais profunda escassez de água. O país tem dependido de uma combinação de entregas de água em camiões cisterna por parte de organizações humanitárias e de redes de canalização, cujo funcionamento é prejudicado pela instabilidade no fornecimento da energia e elevados custos dos combustíveis.

Durante o mês de maio, as equipas da MSF fizeram avaliações das necessidades em 48 campos para pessoas deslocadas e duas aldeias na região Noroeste da Síria, onde se encontram aproximadamente 60 000 deslocados internos.

Nesta análise foi detetado que 70 por cento dos campos dependem exclusivamente de camiões de água como fonte de água potável. Todos os campos têm latrinas mas metade delas a precisar de manutenção, e em 70% dos campos há falta de instalações de duche. Acresce que 80% destes campos não tinham redes de águas residuais totalmente operacionais.

“As famílias só podem tomar um duche a cada dez dias”

“Desde que viemos para este campo há cinco anos, nunca conseguimos resolver o problema de ter suficientes instalações sanitárias e de chuveiros”, conta Manhal el-Freij, que gere um campo para pessoas deslocadas em Idlib. “O terreno aqui é rochoso e muito difícil de cavar, por isso não conseguimos fazer casas de banho adequadas. E a maior parte dos buracos de esgoto improvisados são feitos com recurso a ferramentas básicas que não são suficientemente boas para esse trabalho”, descreve. Dada a falta de saneamento adequado, junta ainda Manhal el-Freij, “a sarna e os piolhos são comuns aqui”. “As famílias só podem tomar um duche a cada dez dias”, sublinha.

Apesar da urgente necessidade de assistência, o setor de água e saneamento na Síria apenas conseguiu obter cerca de 8 por cento dos fundos que são precisos em 2023. Esta persistente falta de financiamento, combinada com a incapacidade de instaurar projetos sustentáveis a longo prazo, dificulta ainda mais os esforços para disponibilizar serviços adequados de água e de saneamento às pessoas que tanto deles necessitam.

“O caminho para reduzir os riscos invisíveis para a saúde das pessoas deslocadas na Síria, que resultam das condições existentes de água e saneamento, parece ser longo e cheio de desafios”, avalia o coordenador médico da MSF no país. “Para proteger a saúde e a dignidade das pessoas afetadas pela guerra e pelos terramotos na Síria, é precisa atenção imediata, mais e mais bem orientado financiamento, assim como garantir o acesso sustentável e imparcial da ajuda humanitária”, sustenta Halim Boubaker.

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