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Cheias no Sudão do Sul: "Quando a chuva chegar, a única forma de circular será de barco”

Dada a escala das inundações nos últimos quatro anos, parece que as cheias graves são uma nova realidade no Sudão do Sul. A MSF tem ajudado as comunidades a prepararem-se para a temporada das chuvas, ao mesmo tempo que garante que têm um acesso reforçado a cuidados médicos.

Paul Odongo/ MSF

SIC Notícias

Médicos Sem Fronteiras

No horizonte, uma calma paisagem ressequida. Um som disruptor: o barulho do motor de um trator da Médicos Sem Fronteiras (MSF), que se aproxima de uma pequena aldeia em Dentiuk, no estado do Alto Nilo, Sudão do Sul. A reboque, uma canoa de madeira que range à medida que o trator avança. “Tem a certeza que estamos no lugar certo?”, pergunta o condutor.

“Pode parecer que não, mas quando a chuva chegar, esta área ficará quase totalmente inundada e a única forma de circular será de barco”, explica Jorge, o coordenador da equipa de logística da MSF. “Felizmente, como podemos ver, todas as casas nesta aldeia foram construídas em altura.”

Esta pequena aldeia é uma de 11 no estado do Alto Nilo onde a MSF distribuiu canoas, para ajudar a transportar pessoas doentes e grávidas durante o período das chuvas, que normalmente vai de junho até outubro.

Cheias arrastaram aldeias inteiras

Este ano, as chuvas ainda não chegaram, mas as alterações climáticas e as previsões sazonais apontam já para tempos difíceis no futuro. Em maio, a ONU (Organização das Nações Unidas) previu que as recentes chuvas nos depósitos do Lago Vitória unirão forças com as consequências climáticas do El Niño e causarão cheias graves em algumas partes do Sudão do Sul nos próximos meses.

Nos últimos quatro anos, as cheias, exacerbadas pelas alterações climáticas, têm sido a principal fonte de aflição dos sul-sudaneses. Durante as temporadas de chuvas, as cheias arrastaram aldeias inteiras, destruíram plantações, mataram o gado e danificaram infraestruturas cruciais, forçando centenas de milhares de pessoas a fugir de casa.

No ano passado, uma porção maior do que nunca do território do país ficou debaixo de água, e em algumas áreas a água das cheias ainda não recuou. Em Bentiu, no estado de Unity, por exemplo, um campo que serve de abrigo para pessoas deslocadas ficou transformado numa ilha protegida por diques, enquanto que algumas aldeias, como Old Fangak, no estado de Jonglei, continuam debaixo de água.

Mary Abur Thon, 26 anos, foi forçada a sair de casa em Peldiarowei, no estado do Alto Nilo, por causa das cheias que assolaram a região no mês de agosto do ano passado. Fugiu com o marido, os dois filhos e a família mais próxima para o condado de Akoka, onde a situação era (apenas) ligeiramente melhor: para trás, deixou tudo.

“Depois de uma noite de chuva intensa, o nível da água aumentou de tal forma que as crianças nem conseguiam andar”, conta Mary. “Não tínhamos comida, porque a terra ficou coberta com a água. Caminhámos dias e dias para chegar aqui. Quando chegámos, esta área também estava inundada, mas a situação não era tão má.”

Aumenta o risco de contrair malária, principal causa de morte

Para as pessoas que vivem na região, as cheias são uma cruz, que as priva do acesso à comida e que as isola frequentemente em áreas pequenas, sobrelotadas, onde ficam a faltar os serviços mais básicos. Viver sem portas, sem redes mosquiteiras, rodeadas de água paradas onde se reproduzem mosquitos, aumenta drasticamente o risco das pessoas contraírem malária, que é a principal causa de morte no Sudão do Sul.

Numa reação em cadeia, as cheias contaminam as fontes de água e aumentam o risco de doenças transmissíveis pela água, como a cólera e a diarreia. Noutra reação, a sobrelotação de espaços facilita a propagação de doenças infeciosas. Por fim, quando as comunidades inteiras ficam isoladas do acesso a cuidados médicos, há imensas vidas que ficam automaticamente em risco.

Para organizações humanitárias como a MSF, alcançar pessoas em necessidade torna-se progressivamente mais desafiante, à medida que as cheias arrastam e cobrem as estradas, pontes e aeródromos.

É com tudo isto em mente que a MSF tem ajudado as comunidades a prepararem-se para a temporada das chuvas, ao mesmo tempo que garante que têm um acesso reforçado a cuidados médicos.

“Quando as pessoas adoecem aqui, não temos forma de as transportar até Malakal, a não ser de barco”, sublinha Angua Biech, o chefe da aldeia de Aree, que fica no condade de Akoka - recentemente, esta aldeia recebeu uma canoa da MSF. “Antes tínhamos de alugar barcos para isto, mas agora será muito mais fácil transportarmos pessoas pelo rio Kodok. Depois, a MSF consegue prestar-lhes lá apoio.”

MSF dá formação com o objetivo de travar surto de doenças

A Médicos Sem Fronteiras tem estado também a preparar provisões médicas em várias áreas em situação de vulnerabilidade pelo país, incluindo no estado do Alto Nilo. Ao armazenar e preparar devidamente a distribuição de medicamentos para tratar a malária, ou outras doenças transmissíveis pela água, as equipas da MSF esperam conseguir conter um futuro surto de doenças o mais rápido possível, para impedir que se propaguem.

Também, para capacitar as pessoas a providenciar cuidados em situações de emergência, as equipas da MSF fornecem formação a alguns membros da comunidade, sobre cuidados primários, cuidados avançados e cuidados para assistir grávidas durante partos.

“O trabalho de parto não é um processo que possa ser atrasado depois de começar, mas nestas áreas a instalação de saúde mais próxima fica, muitas vezes, a várias horas de distância – e este tempo só aumenta em tempos de chuvas intensas e inundações”, explica Dinatu, coordenadora de atividades de obstetrícia da MSF em Malakal. “Estamos a treinar as parteiras tradicionais nestas aldeias, para capacitá-las a prestar cuidados a grávidas enquanto as levam para a unidade de saúde mais próxima.”

Dada a escala das inundações nos últimos quatro anos, parece que as cheias graves são uma nova realidade no Sudão do Sul. Responder a esta panóplia de desafios exigirá um esforço concertado entre as autoridades, doadores e a comunidade humanitária, tanto para garantir que as pessoas têm acesso a cuidados médicos, como para antecipar e responder a consequências futuras das alterações climáticas na região.

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