Enquanto os políticos europeus replicavam acordos mortíferos com a liderança tunisina em julho passado, pessoas migrantes africanas estavam a viver na Tunísia o que descrevem como “o pior pesadelo” da vida delas. Muitas destas pessoas ainda continuam a ser alvo de violência e intimidação num país que é inseguro para elas.
Com o reinício dos trabalhos no Parlamento Europeu e dos debates acerca do acordo de migrações, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) está apreensiva com os testemunhos chocantes recolhidos a bordo do navio de buscas e salvamento que opera no Mediterrâneo Central, o Geo Barents, em que são relatadas histórias de discriminação crescente, ataques violentos e expulsões coletivas na Tunísia de pessoas oriundas da África Subsariana – levantando dúvidas acerca da segurança delas, da proteção e do acesso a serviços, incluindo serviços de saúde.
Os Estados-membros da União Europeia (UE) devem opor-se à aplicação da componente de gestão das fronteiras no Memorando de Entendimento com a Tunísia. Devem tomar posição contra a proliferação de acordos que não oferecem qualquer responsabilização nem salvaguardas contra a violação dos direitos humanos no que respeita a migrações forçadas.
“Alguém no autocarro atirou o meu telemóvel para o chão e começou a bater-me”
Achille ainda recorda vivamente a sensação avassaladora que teve de que algo estava errado numa manhã de fevereiro, quando apanhava o autocarro habitual rumo ao trabalho, na Tunísia. A certa altura deu-se conta de que não havia outras pessoas africanas negras na rua, no autocarro ou em qualquer sítio em redor. Isto, a par da presença da polícia no autocarro, deixou-o num estranho estado de alerta, que ele não conseguia compreender de início.
“A dado momento, alguém no autocarro atirou o meu telemóvel para o chão e começou a bater-me, enquanto a polícia, que estava perto, nada fez para o impedir. Arrastaram-me para fora do autocarro e continuaram a bater-me na rua, um apunhalou-me com uma chave de fendas”, recorda Achille sobre aqueles momentos de medo.
Achille é uma das pessoas que foram resgatadas no mar Mediterrâneo Central, entre 15 e 16 de julho 2023, pelo navio de buscas e salvamento da MSF, o Geo Barents. Nessa altura, as equipas da organização médica-humanitária levaram a cabo 11 operações de resgate consecutivas de uma série de embarcações em perigo que tinham partido de Sfax, na Tunísia.
Uma vez em segurança a bordo do Geo Barents, sobreviventes começaram a contar às equipas da MSF relatos horríveis do medo, tortura, abusos e violência por que passaram na Tunísia, e que se agravaram dramaticamente pelos finais de fevereiro passado.
Acordos sem garantias para o bem-estar e segurança dos migrantes na Tunísia
Durante as 24 horas em que as equipas da MSF fizeram múltiplos resgates, nos quais Achille e outras 420 outras pessoas foram levadas para bordo, políticos europeus e tunisinos estavam a finalizar um acordo.
A 16 de julho, a UE e a Tunísia assinaram um Memorando de Entendimento sobre uma nova "parceria estratégica" e um pacote de financiamento até mil milhões de euros para a Tunísia, incluindo 105 milhões de euros destinados à "gestão de fronteiras, buscas e salvamento, combate ao tráfico e regressos". O acordo não prevê quaisquer garantias para o bem-estar e segurança das pessoas migrantes na Tunísia.
“O Memorando de Entendimento replica políticas perigosas da UE que estão cada vez mais a ‘incentivar’ países terceiros a aumentar a dissuasão e a contenção das pessoas que tentam chegar à Europa”, refere o coordenador-geral da MSF no Geo Barents, Juan Matías Gil. “Este acordo vai cobrir com impunidade e sistematizar a violência contra migrantes na Tunísia, e faz da UE cúmplice dos abusos e mortes. Estas irresponsáveis políticas de migrações põem em último lugar o bem-estar e os direitos das pessoas em movimento e encurralam-nas em ciclos de violência, abusos e desespero.”
Além disso, foram reportados incidentes de ataques organizados pela população civil e violência em contextos urbanos e raides, que incluíram apedrejamentos, ataques com facas e insultos raciais. As pessoas sobreviventes descreveram também despejos maciços de inquilinos subsarianos, discriminação racial e recusa no acesso a bens e serviços.
Também relataram a ocorrência de raptos, tortura e extorsão para obter resgates, antes mesmo do discurso do Presidente. Achille contou: “Depois de chegar à Tunísia em outubro de 2022, homens armados não identificados raptaram-me e levaram-me para um estaleiro de obras, onde me espancaram durante 12 dias. Fui torturado com um taco de basebol enquanto tinha ambas as mãos e pés amarrados com uma corda comprida. Gravaram vídeos para enviar à minha família a pedir dinheiro para pagar pela minha liberdade.”
“O Presidente disse que vocês, africanos, têm de ir para casa”
“As pessoas espancavam, perseguiam e atacavam-nos se nos encontrassem nas ruas. Diziam-nos para partirmos das nossas ‘casas negras’. Começaram a pilhar e a atirar cocktails Molotov às nossas casas”, recorda Achille. “Muitas pessoas ficaram gravemente feridas. Não sabemos o que lhes aconteceu.”
“Uma manhã acordei e a dona da casa veio e disse-me: ‘O Presidente disse que vocês, africanos, têm de ir para casa. Não podemos mais acolher africanos’”, lembra Fatima*.
Sobreviventes no navio da MSF contaram também ter sido intimidados e humilhados, incluindo com insultos racistas, pessoas a cuspir-lhes ou a tapar o nariz quando passavam por eles nas ruas. “Nos quatro meses completos em que lá estive, as pessoas atacaram-nos e roubaram-nos. Nós não lutámos com elas”, explica Mamadu*, um adolescente de 17 anos. “As pessoas na Tunísia diziam-nos: ‘Não precisamos de pessoas negras aqui’.”
Detenções arbitrárias, tortura e expulsões
“Quando estive na prisão, a polícia deixou de nos dar pão e água. Disseram ‘não, as casas de banho estão fechadas’,” refere Hakim*, de 26 anos. “Ao fim de três dias, enfiaram-nos num carro e depois largaram-nos na rua. Ficaram com os nossos telefones e os nossos salários. Tiraram-nos tudo.”
As pessoas sobreviventes deram conta também que, enquanto se encontravam sob custódia policial, ocorreram vários incidentes de expulsão para países fronteiriços como a Líbia e a Argélia. “Em Sfax, pegam nas pessoas negras, tenham ou não documentos, e levam-nas para a fronteira com a Argélia”, descreve Fatima*. Outro sobrevivente conta como ele e outras pessoas foram expulsas para o deserto: “A polícia tunisina não quer ver pessoas negras. Odeiam-nos. Quando nos levaram para a Argélia, andámos durante quase uma semana no deserto.”
Aumento no número de migrantes que fogem da Tunísia
Desde o início de 2023, o número de barcos a partir da Tunísia aumentou. “A Tunísia não é um lugar seguro para as pessoas negras”, refere Achille. “A todos os meus irmãos negros: desaconselho-vos fortemente a ir para a Tunísia. Não é um lugar seguro. Há racismo extremo.”
O aumento no número de pessoas, incluindo cidadãos da Tunísia e migrantes, que fogem da Tunísia, significa que este país ultrapassou em 2023 a Líbia como principal ponto de partida das travessias do Mediterrâneo Central rumo à Europa. Estima-se que nos primeiros seis meses de 2023, 56 por cento das pessoas chegadas à Itália através do Mediterrâneo Central tenham embarcado na Tunísia – mais do dobro do número de pessoas no mesmo período em 2022. “Nunca foi minha intenção atravessar o mar. Nunca, nunca. Para mim, atravessar o mar foi um grande risco”, acrescenta Achille.
Apesar de as equipas da MSF terem falado apenas com algumas das pessoas que conseguiram fugir e foram resgatadas no mar, as vidas e a segurança de muitas outras estão em perigo, devido aos riscos de violência, de perseguição racista e de um contexto social e político cada vez mais grave.
O bem-estar e os direitos destas pessoas foram abandonados pelas políticas europeias de migrações, que replicam acordos mortíferos, como os da Turquia e da Líbia, para externalizar o controlo de fronteiras e incentivar países como a Tunísia e a Líbia a levar a cabo retornos forçados agressivos e impedimentos dissuasores.
*Os nomes de algumas pessoas foram alterados por pedido de proteção de identidade.