Vejam bem isto: quando tinha 17 anos, passei férias de verão em Aveiro, na casa de uns tios absolutamente adoráveis, com quem tinha vivido no ano anterior.
Os dias eram todos iguais, ou seja, ocupados a ir à praia e a passar tempo de qualidade com amigos e familiares. Ainda não tinha tirado o curso de árbitro nem imaginava sequer que o iria fazer um ano mais tarde.
Depois de passar mais um dia a jogar à bola com a malta no areal da Barra, preparava-me para vir embora à boleia de um dos amigos da matilha (que por sinal era agente da autoridade). Enquanto ele foi fazer não sei o quê, eu entrei para o carro e sentei-me no lugar do "pendura".
Esta é uma daquelas imagens que nunca se esquece: estava com uma t-shirt branca, calções de banho azuis e chinelos. Os ténis já estavam arrumados na mala.
Uma "Whalter" no porta luvas
Enquanto esperava por ele, comecei a vasculhar tudo, à procura de qualquer coisa para distrair (esqueçam lá isso dos telemóveis). A dado ponto, abri o porta-luvas e deparei-me com uma arma.
Uma "Whalter" que, lembro-me bem, estava em modo segurança, devidamente acondicionada. Mas, quando somos novos, somos parvinhos. E fui mais parvinho do que devia, pois claro.
Embora consciente dos perigos, peguei na pistola só para sentir o peso e textura. Acho que nunca o tinha feito antes na vida. Lembro-me que tive o cuidado de a apontar para baixo e de ter explorado visualmente aquele pedaço de perigo real. Puxar o gatilho nunca foi opção e, em boa verdade, nunca aconteceu.
Aliás, até hoje não sei bem o que se passou. Penso que inadvertidamente desativei o botão de segurança e, vá se lá saber, puxei para trás um mecanismo qualquer (tem um nome técnico) que não devia ter puxado. Para meu azar, havia uma bala na câmara, e... pronto. Um disparo estrondoso!
Os vidros estavam fechados (o AC estava ligado) mas o carro abanou todo. Estremeceu! E eu devo ter ficado surdo uns 10, 20 segundos, garantidamente.
Foi um daqueles momentos que... só estando lá. Não há palavras que façam justiça ao que se vive e sente naquele instante.
O meu amigo estava mais pálido do que eu
O mais incrível é que, quando respirei fundo e acalmei um pouco, só pensava na asneira gigante que tinha feito.
"Como é que dás um tiro dentro de um carro? E como é que não te magoaste, como é que não aconteceu nada de horrível"?
O meu amigo entrou no carro em pânico total. Estava mais pálido do que eu. Estava gelado, com lábios roxos e olhos esbugalhados! Tremia dos pés à cabeça e só me perguntava o que tinha feito e se estava bem.
Respondi que sim, que estava bem e que não sabia bem o que tinha acontecido. Disse-lhe que nunca tinha posto o indicador no gatilho nem disparado nada. Silêncio total durante uns momentos. Nenhum dos dois conseguia articular uma palavra de jeito.
E a bala? Onde está a bala?
De repente, tentei racionalizar e perguntei-lhe: "E a bala? Onde está a bala? Estraguei alguma coisa?" Do carro não tinha saído, porque os vidros estavam intactos.
Procurei, procurei e, quando olhei para a zona do porta-luvas, vi que estava lá qualquer coisa encravada. Metade dentro, metade fora. Como nos filmes. Era a bala, pois claro.
Só a seguir, quando desviei o olhar para baixo, é que reparei que o meu pé esquerdo estava... estranho. Tinha uma mancha amarelada, que escorria devagar, tipo gelatina. Lembro-me de lhe dizer que a bala devia ter furado qualquer coisa que entornou para cima dos pés.
Ele olhou para lá e ficou ainda mais gelado. A soluçar, perguntou-me se me sentia bem. Demorou um minuto (se calhar, até mais) até finalmente cair em mim e perceber que tinha atingido o próprio pé. Ali bem no meio, perto dos dedos.
Meus amigos, que dores
A bala entrou por cima, saiu por baixo, bateu no fundo do carro, fez ricochete e subiu, ficando alojada no porta-luvas. De tanto destino fatal que poderia ter tido... teve aquele e eu não percebi nada, não vi nada. Não senti nada.
Aos poucos, a tal espuminha estranha foi ficando alaranjada e aí sim, começaram as dores... e, meus amigos, que dores! Tinha dado um tiro no pé. Literalmente. E tinha sobrevivido para contar a história.
Daqui para a frente, tudo evoluiu muito rapidamente e os pormenores tornaram-se mais gráficos. O trajeto para o hospital foi em três, quatro minutos. Por essa altura, já eu estava alheado, fora dela, acho que em choque total.
O pé inchou, escureceu, deformou. Horrível. Horrível mesmo. O carro ficou todo sujo e com um cheiro que nunca esquecerei.
Lembro-me que nas Urgências um médico com "sentido de humor" pôs um espelho virado para a sola do meu pé e disse-me: "Já viu? O buraco de saída é sempre maior do que o de entrada"!
Vomitei.
Os meses que se seguiram foram infernais.
Gesso, talas, pontos mal cicatrizados, dores que não dá para descrever. Quatro dos cinco dedos partiram (salvou-se o dedão, para minha sorte) e ainda hoje a cicatriz está lá. Os dedos nunca ficaram como deviam, mas eu fiquei intacto e esse foi o final feliz que me bateu à porta.
Brincar com armas de fogo nunca é opção
No meio de uma tremenda negligência, de uma estupidez gigante que me poderia ter custado a vida, tive a felicidade de escapar e, confesso, estou grato por isso.
Brincar com armas de fogo nunca é opção, mesmo quando já temos idade para ter juízo. Nenhuma criança ou menor de idade deve ter acesso a instrumentos de fogo, que possam acabar com as suas vidas e destruir a dos seus familiares.
A única coisa engraçada que saiu daquela patetice é que, de facto, eu posso dizer a toda a gente que, realmente, "dei um tiro no pé".
Não é motivo de orgulho, é só a tal sensação besta de saber, na pele, o que significa a expressão.