Jéssica Biscaia morreu às 16:27 do dia 20 de junho de 2022 no Hospital de São Bernardo, em Setúbal. Foi no mesmo hospital onde nascera de perfeita saúde, apenas três anos antes, que não resistiu às dezenas de ferimentos sofridos ao longo de cinco dias de tortura. Ali começou uma complexa investigação da Polícia Judiciária que levou o Ministério Público a acusar cinco pessoas, incluindo Inês Tomás, mãe da menina, de vários crimes que levaram ao seu homicídio. Todos se sentam, esta segunda-feira, no banco dos réus.
A acusação do Ministério Público (MP) começa por revelar como Inês, de 38 anos, conheceu a família Montes por esta vender droga ao seu ex-companheiro, pai de Jéssica. Ana Cristina, tratada por Tita, é casada com Justo Montes, e juntos têm dois filhos: Esmeralda, de 27, e Eduardo de 29 anos. Todos respondem por vários crimes contra a criança.
Além do negócio de droga, Tita apresentava-se como vidente, “dedicando-se a práticas de bruxaria” pelas quais foi procurada por Inês Tomás em maio do ano passado. A mãe de Jéssica atravessava “problemas conjugais” e, depois de receber algumas mezinhas de Tita, assumiu que não tinha dinheiro para lhe pagar. A vidente, com o apoio do marido e da filha, Esmeralda, exigiu-lhe então que lhes entregasse Jéssica como garantia de pagamento.
Inês assim o fez e Jéssica passou vários dias nas mãos da família Montes. Quando foi devolvida à mãe, a menina estava de tal forma maltratada, vítima de sucessivos espancamentos, que “apenas se alimentou de líquidos” durante uma semana.
Ainda assim, descreve o MP, e já em junho, Inês voltou a aceitar entregar a filha àquela família por novas dívidas de bruxaria que não conseguia pagar, com os juros a crescer todos os dias. “Assim o fez, apesar de saber que a sua filha poderia ser novamente agredida”, sublinha o MP.
No dia 20 de junho, “sem que nada o fizesse prever”, Tita ligou a Inês dizendo-lhe que lhe iria entregar a filha. Numa praça de Setúbal, a menina foi passada em braços, “enrolada numa manta e com óculos de sol colocados no rosto, permanecendo sem se mexer, falar, com os olhos sempre fechados, hematomas nas pernas, com a zona da testa inchada, grande pelada no couro cabeludo e a zona do rosto toda ensanguentada, inclusivamente, com uma queimadura no nariz e buço”.
“Quando a menina melhorar entregas novamente à gente, senão a gente mata-te”, terão dito repetidamente Tita e Esmeralda, refere a acusação.
Mas Jéssica não melhorou. Chegou à casa que a mãe partilhava com o namorado pelas 10:00. “Depois de ter visto as lesões”, Inês deitou a filha “na cama e aí a deixou”. Apesar da menina “se encontrar completamente prostrada”, sem qualquer reação, Inês só voltou a entrar no quarto cinco horas depois. Já passava das 15:00 quando, ao encontrar a filha a sufocar, decidiu contar ao namorado o que se passava e foi o homem quem ligou para o 112. A chamada chegou ao INEM pelas 15:15. Uma hora e 12 minutos depois Jéssica estava morta.
Menina usada como correio de droga
Jéssica foi alvo de "palmadas, murros, pontapés em todas as zonas do corpo, incluindo cabeça, e fortes puxões de cabelo" e chegou a ter um “líquido fervente ou outro produto abrasivo” entornado sobre o rosto, o que lhe provocou queimaduras.
Mas só depois de concluídos extensos exames, após a autópsia, o MP recolheu provas para concluir a acusação, à qual acrescentou uma descrição perturbadora. Tita e Justo, de 53 e 59 anos, e os filhos Esmeralda e Eduardo usaram Jéssica “para transportar produto estupefacientes não sendo assim descobertos pelas autoridades policiais”. A menina de três anos era então um correio de droga nas mãos de todos os membros da família, que colocaram dentro do seu corpo e na sua fralda “uma quantidade não concretamente apurada de cocaína”.
Traziam a droga de Leiria, onde têm familiares, para a vender em Setúbal. Todo este processo acontecia com Jéssica sedada, descreve a acusação.
Uma noite no karaoke depois de ver a filha agonizar
Inês Tomás responde em tribunal pela morte da filha por omissão. Durante todo o tempo que a menina passou em “grande sofrimento e tortura” nunca procurou ajuda, quer da família e amigos, quer das autoridades.
Na véspera da morte de Jéssica, a acusação diz que Inês foi chamada a casa de Tita porque a filha “teria caído de uma cadeira e que tinha magoado o rosto” e era preciso levar-lhe medicamentos. Mas quando lá chegou, Inês encontrou outro cenário.
Jéssica estava ao colo de Tita “completamente despida, apenas com a fralda colocada, prostrada, sem abrir os olhos, sem falar, com o corpo repleto de hematomas, queimadura na face (nariz e buço) e uma grande pelada na cabeça”. Pouco depois, a criança “começou a ter convulsões e, consequentemente, a enrolar a língua”. A vidente pediu a Inês que fosse buscar uma colher à cozinha, cujo cabo usou para impedir que Jéssica sufocasse com a própria língua.
Inês voltou a ouvir que só levaria consigo a filha quando pagasse a dívida e saiu da casa.
“Apesar de ter observado as lesões e de se ter apercebido do estado muito grave de saúde de Jéssica, sua filha, a arguida Inês regressou a casa, deixando-a ali entregue, sem contar tais acontecimentos a ninguém nomeadamente ao seu companheiro, com o qual saiu à noite para um bar de karaoke”, acrescenta o MP.
Todos os crimes dos cinco arguidos
A acusação do Ministério Público imputa a Ana Cristina, conhecida por Tita, a Justo e Esmeralda, em coautoria, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado e dois crimes de ofensa à integridade física qualificada.
A suposta vidente e a filha respondem ainda, em coautoria, por um crime de coação agravado.
Os quatro membros da família Montes estão ainda acusados de um crime de tráfico de estupefacientes agravado e um crime de violação agravado - pela forma como a droga foi introduzida no organismo de Jéssica.
Inês Tomás, mãe da menina, é acusada de um crime de ofensa à integridade física qualificada e um crime de homicídio qualificado, por omissão.
Tita, Esmeralda e Inês estão em prisão preventiva na cadeia de Tires. Justo também está na cadeia e o filho, Eduardo, ficou em liberdade com termo de identidade e residência e obrigação de se apresentar semanalmente às autoridades.