A inteligência artificial (IA) está na moda. Não se fala de outra coisa. Por todo o lado vimos assistindo a uma multiplicação de artigos mais ou menos sobressaltados sobre o impacto que a inteligência artificial terá nos nossos dias.
Já vai tardia a discussão e o alvoroço. Vivemos um quotidiano em que a inteligência artificial já está poderosa e discretamente presente nas nossas vidas. São ubíquas as suas utilizações e todos se apercebem de que estamos no princípio de qualquer coisa que pode mesmo impor formas de pensar e de fazer bem diversas das que estamos acostumados.
Fazem-se canções ao estilo dos Beatles e Pink Floyd sem intervenção humana, realizam-se filmes escritos e editados sem mão humana, produz-se arte significante sem intervenção humana, escreve-se poesia e literatura sem mão humana. De qualidade cada vez mais apurada. Como não andar ávido com isto? Impossível. Há coisas que não se pedem a ninguém.
A beterraba em Veneza
De todos estes arroteamentos tecnológicos, existe um que nos atiça especial indiscrição: a educação. Como estão e vão as escolas acolher esta tecnologia?
Temos testemunhado a resposta que várias universidades têm assumido perante o advento, ou melhor, a democratização, ou melhor ainda, a popularidade do chatgpt (Generative Pre-training Transformer Chat), uma modesta janela do que a IA é e será.
O chatgpt, em termos muito sucintos, faz o seguinte: imagine que tem de fazer um trabalho sobre a influência da beterraba na economia da Veneza do Quatroccento – sim, vamos mesmo ao disparate. O que dali resulta é um texto sobre o assunto que não existe em nenhum outro lugar da net, com frases escritas pela primeira vez no planeta. Nenhuma assinatura, nenhuma impressão ou marca d’água digital pode sequer sugerir a proveniência algorítmica do texto que é, por isso, impossível de ser indiciado de plágio. É o crime perfeito. Trata-se efetivamente, de um texto único e inédito. É o mesmo que ter, literalmente, um ghost writer à nossa disposição.
Para tal, ao estudante basta selecionar aquilo que muito bem entender desse texto, juntá-lo ao seu trabalho e seguir a sua viagem académica. Ou copiá-lo na íntegra.
Todos aqueles programas informáticos que desde há décadas têm servido aos professores para identificar, perseguir e expor o plágio dos seus estudantes são absolutamente incapazes de referenciar esta presença exógena. É como deixar passar um lança-chamas dentro de uma mala de aeroporto. São inúteis.
A temperatura do texto
Entre os parâmetros do texto a gerar pela máquina existe um que é particularmente revelador. Para além de configurarmos o número de caracteres que o “nosso” texto irá ter, podemos “ajustar” o tom do texto, incrementando ou reduzindo, a sua “temperatura”. Ou seja, o texto pode tornar-se mais coloquial ou menos coloquial consoante desejarmos.
Aquilo que esta caranguejola digital nos promete é que os textos produzidos terão duas características cuja formulação é realmente temível: serão “plausíveis” e “coerentes”. Duas palavras com que por vezes até costumamos caracterizar os burlões. Vermos nascer à nossa frente textos “plausíveis” e “coerentes”, para além de inéditos, sobre uma renascentista beterraba veneziana é algo que produz em nós a ideia de estarmos na presença de uma alteridade biónica, uma realidade pressentida, uma fantasmagoria, um corpo presente. E, contudo, nada disto é assim. Estamos cientes de que se trata de um artifício técnico, algorítmico, complexo. Um triunfo científico, enfim.
A quem pertence este texto?
Mas que tem isto a ver com educação? Absolutamente tudo. Num sistema em que a qualificação e classificação dos estudantes se faz essencialmente a partir da execução de relatórios, trabalhos, teses, dissertações, etc., nomeadamente no ensino secundário e superior, o chatgpt transforma-se rapidamente no destino forçoso do estudante ou dissertando. Recorde-se: não existe qualquer possibilidade de alguém chegar a suspeitar e muito menos descobrir a proveniência inumana do texto. Nada.
Dito de forma ainda mais clara: o trabalho que o estudante entrega ao seu professor, não tendo sido feito por ele, é blindadamente original. É isso que “generativo” quer dizer. A máquina aprende padrões diferentes de abordar um mesmo tema ou mote. Sim: a mesma proposição inicial origina textos diferentes e respostas diversas.
Assim sendo, não surpreende que a primeira resposta das universidades seja reservar direito de admissão da IA nestes estabelecimentos. E, de facto, têm razão em proibir a sua entrada na universidade todas aquelas trémulas instituições que não pretendam repensar formatos de transmissão de conhecimento que cristalizaram nos séculos passados.
O jogo do gato e do rato
Como sempre, aquilo que mais desperta o interesse de um estudante que se senta junto de mais 80 ou 90 colegas num auditório é o carisma do seu professor. Muitas vezes, nem sequer é a importância do que está a aprender. Aquilo que o “agarra” é a forma como o professor apresenta e a dinâmica que consegue imprimir ao momento da comunicação. Mas os estudantes terão de ser avaliados e classificados. Quando o chatgpt chega à boca de cena, o carisma e a dinâmica desaparecem se ao dinâmico e carismático professor restar apenas a entrega do trabalho ou da dissertação escrita dos seus estudantes para lhes atribuir uma classificação ou uma nota.
Aquilo que mais nos importa reter desta intromissão da inteligência artificial no espaço escolar é a ideia pela qual os sistemas tradicionais de “ensino”, meramente transmissivo e unidireccional, caem pela raiz, nomeadamente na sua docimologia. O espaço para “carisma” e “dinâmica” conserva-se intacto.
Os professores irão conservar incólumes as suas prerrogativas de entusiasmar os seus estudantes nas suas aulas. E vice-versa. Mas todo o seu trabalho tradicional de avaliação é, de repente, ultrapassado por uma realidade contundente. Porque se aquilo que o professor procura no seu estudante é plausibilidade e coerência académica, ambos terão muito que fazer para descortinar e provar que são realmente autênticas.
É o jogo do gato e do rato. Estão ambos entregues às feras em plena arena da inteligência artificial. Não têm por onde fugir. Estudante e professor. Se não mudam e não se esforçam por perceber o que lhes está a acontecer, um e outro estarão encurralados.
Uma única via: conhecer os estudantes
Ao professor só lhe resta um remédio para combater este ríspido assédio da IA: é conhecer os seus estudantes. Tão simplesmente isto: conhecer devida e proximamente os seus discípulos. A escala vai ter de reduzir. Anfiteatros com 80 ou 90 estudantes (e mais) serão obsolescências ou aposentos cerimoniais de cortesia. Servirão apenas para debitar aquela informação que qualquer bot IA pode produzir.
É bom que se perceba que conversar com o chatgpt, quando bem utilizado, é o mesmo que ter, como dizia um amigo recentemente, um professor catedrático sobre todos os assuntos, constantemente disponível. É a erudição presente e gratuita ao nosso dispor. E, repita-se, será cada vez mais potente e credível.
Não é por isso inesperado que se prediga que a educação, sobretudo em meios escolares onde a relação entre professores e estudantes é mais distante, tem agora um futuro bem mais... (estais preparados?): humano. Um futuro mais humano.
A educação pode ganhar força, humanidade, confiança e privacidade com a adopção da IA. Não apenas porque tudo o que é relatório ou resumos ou actas e demais instrumentos fastidiosos e rotineiros pode passar a ser escrito por esta IA, dispensando tempo e energia humana para tarefas bem mais apetecíveis, mas porque – como dizem as bulas médicas – todos estes textos artificiais “não dispensam a leitura” dos mesmos. Tudo é leitura.
A qualidade do texto e o seu teor passam a ser elementos conjunturais de avaliação. O autor é culpado antes de julgado inocente. A autoria é irrelevante até que haja uma defesa do teor de um texto. Será essa, agora, a principal incumbência do “autor”. O estudante vai ter de saber defender o “teor”. Isso traz inúmeras consequências para o ensino. As salas de aula vão ser mais pequenas para encurtar distâncias, que é assim que se conhece uma pessoa. Todos os contextos de aprendizagem terão de assegurar a participação activa dos estudantes sem a qual tudo é dúbio. Isto representa uma amplificação significativa da voz do estudante.
Só conta o próprio aluno e o que diz e faz com o que escreve e não aquilo que escreve. Afinal, pode nem ter sido ele a escrevê-lo.
O professor passa a ter uma importância acrescida na verificação da dinâmica e do carisma – agora não o seu – do seu estudante. Aquilo que mais releva a partir de agora é a defesa da tese. A defesa do teor; a forma como um professor consegue examinar aquilo que o estudante defende e percebe o que está a dizer. E isso é algo que tem estado muito arredado de muita prática docente. Repita-se: com esta presença algorítmica, a lógica transmissiva, unidireccional, distante, do ensino cai por terra – e cai com estrondo.
Avaliação de textos não é para confiar
Antigamente, como hoje, um estudante “assistia” – verbo horrível - às aulas e depois, a um sinal combinado entregava provas, exames, trabalhos, artigos, relatórios e resumos, dando assim conta do que nesse momento sabia. O professor lia e corrigia o que ele escreveu e decidia a nota a dar ao trabalho (não ao aluno). E pronto. Estava feito.
Com a IA aquilo que renasce é a necessidade de perceber que todo o texto (não caligráfico) em princípio é de origem dúbia. Não é possível identificar o seu autor nem garantir se a sua plausibilidade e coerência são de fiar. Ou seja, não servem para avaliar nada. Nem autor, nem teor.
Parece ser o fim do mundo tal qual o conhecemos. Mas vai-se a ver melhor e nem por isso. Não se trata de um estorvo, mas de uma oportunidade única de repensar a aprendizagem e os contextos materiais em que ela ocorre.
A IA intima a presença interventiva do estudante e carrega-o de responsabilização por aquilo que profere, aquilo que defende. A eminência do professor resulta também reforçadíssima. Ele constitui-se numa presença impreterível, urgente no acompanhamento e orientação do trabalho e carreira do seu estudante. É o único que conhece o seu estudante e que sabe por isso avaliar da autenticidade da relação que ele tem com o teor do seu texto – a autoria.
O pânico ludita
Em termos organizacionais a coisa vai longe. A indispensável redução da escala dos contextos de aprendizagem vai exigir o recrutamento de mais professores. Não seria surpreendente que esta consequência tivesse efeitos muito mais notórios no ensino superior, que deve recusar o pânico ludita e abraçar de bom grado esta oportunidade; este tempo fascinante em que uma tecnologia nos permite que não percamos tempo a pensar na forma como se faz, mas de mãos e olhos postos naquilo que queremos que se faça.