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Os professores estão rigorosamente entregues a si mesmos

Todos desconfiam dos professores. Não acreditam neles. E por isso não estão para pôr as suas mãos no fogo por eles. Ninguém está. E é isto que inunda as ruas de sanha e as escolas de desalento.

Rui Correia

Se quisermos ir direito ao assunto, a coisa diz-se do seguinte modo: ninguém está do lado dos professores.

Há décadas que os professores anseiam por um governo que esteja do seu lado. Os professores desejam sindicatos que estejam do seu lado. Os professores suspiram por uma imprensa que esteja do seu lado. Os professores aguardam por uma população que esteja do seu lado. E a verdade é que ninguém está do seu lado.

Os professores estão rigorosamente entregues a si mesmos. Todos desconfiam dos professores. Não acreditam neles. E por isso não estão para pôr as suas mãos no fogo por eles. Ninguém está. E é isto que inunda as ruas de sanha e as escolas de desalento.

A relação entre os professores e o resto do mundo é parecida com um casamento que está mesmo, mesmo prestes a desfazer-se. Qualquer coisa que um diga é vista pelo outro com tamanha suspeição que o melhor é nem ouvir, senão ainda acaba tudo muito mal. E quando um deles se resolve a cortejar o outro, soa tudo a falso.

Professores: esses velhos e sabidos

Nunca um governo deixou de enaltecer as virtudes da classe e de as louvar em prosa pública. Chega a parecer que se acredita mesmo no que se está a dizer. Mas em política, como no amor, o que conta é aquilo que se faz. Os gestos para além das palavras. Os professores reclamam por estadistas. Alguém que saiba colocar gestos e decisões concretas na congruente afirmação dos seus princípios e dos seus compromissos. É isso que separa o estadista daquele tipo que acabou por ir parar à política.

A bravata de que os professores são maravilhosos em quem não está disposto a dar o couro e o cabelo por eles vai soar, como infelizmente soa sempre, a conversa de engate. E os professores são velhos e sabidos de mais para andar no engate.

Não se pense que os professores se armam ao difícil. São é muitas as ofensas continuadas e as agressões seguidas; são anos de socos e de golpes, hooks, upper cuts, ganchos sucessivos em plena face. É uma classe inteira em KO técnico. Não parece que se tenha ainda compreendido devidamente a magnitude do desastre, a dimensão dos estragos, a gravidade dos ferimentos.

O cofre da inocência

Por toda a internet circulam listas de frases públicas que recordam os vitupérios grosseiros contra os professores por parte dos sucessivos governos deste país, nos últimos 25 anos. Como pode pedir-se lhaneza? Como pode alguém acreditar em quem tanto avilta?

Depois de tantas ofensas, tanta vileza, tanta infâmia incessante, já estão esgotados os cofres da inocência. Inocência, sim, falemos dela. Os professores orbitam no universo da inocência. Todos os seus dias são marcados pela vizinhança da inocência. São profissionais, especialistas, cuidadores formais da inocência. Lidam com ela todos os dias, como os médicos com a morte e a dor. Com ela se comovem diariamente. Sabem que é a inocência aquilo que os nutre. Põem as mãos no fogo por ela. E não se veja nisto qualquer ingenuidade. Muito mal andamos nós quando confundimos inocência com credulidade.

A inocência é um bem primário sem o qual nenhuma comunidade sobrevive. A inocência é a munição de todo o policiamento cívico. Zelar pela inocência de uma criança, de uma vida, de uma comunidade é algo fundamente complexo, como qualquer pessoa sabe ou devia saber. Tal como a cantiga, também a inocência é uma arma. A única arma do professor.

O limite das palavras

Há uns anos uma canção da rádio dizia “I get weak in the presence of beauty”. É precisamente do que aqui se trata. Qualquer professor sabe que isto se aplica à sua vida numa base quase diária. Num mundo em que tudo vale, a educação deve perceber-se como a reserva ecológica da beleza, da utopia, da inocência.

É verdade que os professores protegem, amparam e defendem os seus miúdos. Por vezes defendem até rapazes e raparigas que nem deviam defender mas fazem-no porque esses são, a maior parte das vezes, miúdos que não têm mais ninguém que os defenda.

Perceber que existe uma agenda política que não respeita o valor patrimonial da inocência leva qualquer profissional da educação à justa cólera. E é assim que deve ser. É nesses momentos que o copo transborda e a classe, heterogénea como a gente culta sempre será, se une e escancara a sua impaciência. Nesses momentos de indignação aberta, unida, os professores não precisam de quem verta mais palavras. Por mais virtuosas que sejam, serão sempre poucas e postiças. Querem-se gestos. Nesses instantes exigem-se testemunhos de coragem. Exigem-se estadistas em lugar de políticos.

Guardadores da candura, industriados em preservá-la de toda a manha, os professores reclamam uma absoluta ausência de malícia. Querem actos que cumpram palavras. Ser estadista é isso mesmo: decidir em completa autenticidade. Agir em conformidade com o que se diz. Ir à liça. Como se diz em estrangeiro: “Put your money where your mouth is”.

O sim do sindicalismo

Ter sindicatos de professores cuja agenda se curva tão submissa a outras agendas que não as da educação, minará sempre a confiança que esses mesmos sindicatos deviam amealhar junto daqueles que representam. Afinal são os professores quem lhes paga as contas e todos os meses os sustentam para que sejam úteis e tenazes. E o mundo precisa mais do que nunca dos sindicatos.

Cada dia que passa vemos como o fosso entre ricos e pobres aumenta. É esse o maior desafio deste século. Os sindicatos representam, como sempre, o destino das comunidades amputadas dos seus direitos de cidadania. Apoiá-los é uma estratégia de futuro. Mas os sindicatos não podem esquecer-se de se elevar na cadeia alimentar da ética. Devem entender que o combate é sempre novo e que o seu protagonismo não se extinguiu nem alterou. Como sempre, exige-se deles contemporaneidade, competência e proveito.

Um sindicato tem de representar uma potência cívica e profissional, acima de toda a suspeita. Encostar-se a este ou àquele partido apenas resulta na insolvência do seu crédito social, no seu fim. A sua emancipação partidária é uma premissa elementar.

Muito mais grave ainda é a pretensão da independência sindical quando essa pretensão se confunde com arrivismo populista e impulsividades atormentadas. É tudo o que mais pode comprometer o duelo por uma educação generosa e segura. Nada disto representa e ampara o papel e a respeitabilidade do professor.

Dos sindicatos contemporâneos exige-se ativismo de maturidade, músculo humanista, precisão técnica e uma sólida compleição reivindicativa. Exige-se tecnocracia, no seu melhor sentido: competência e alforria. Os professores exigem dos sindicatos uma imunidade absoluta ao destrambelho e à partidarite.

Que educação somos?

Quanto aos media, às redes sociais e à sociedade em geral, aquilo que os professores sabem é que não podem contar com nenhuma delas.

Os espaços públicos estão saturados de mensagens de frivolidade delicodoce ou de abominação fútil aos professores. Ou porque ganham mais do que deviam ou porque têm férias até mais não, ou porque não fazem nenhum, ou porque faltam ou porque isto ou porque aquilo, vive-se uma atmosfera de esquizofrenia generalizada que vai servindo de combustível para todas as agressões que levam os professores ao desfalecimento e à desistência, que uma pessoa não é de ferro.

Enquanto não se aceitar politicamente que os professores e os alunos são o reduto da inocência de uma comunidade; que os professores devem ser membros reconhecidos da população com entrada gratuita em todos os museus, públicos e privados, reduções significativas nos preços dos livros, das revistas e jornais, nos bilhetes dos concertos, dos cinemas, dos teatros, dos materiais escolares, e por aí fora.

Enquanto um governo não lutar pelo regime especial de redução da idade da reforma dos professores e assim ativamente rejuvenescer a classe com incentivos palpáveis;

enquanto não decidir que as escolas podem distribuir os horários dos seus docentes como muito bem entendam, sem quaisquer ingerências;

enquanto não se decretar que dois ou três anos da carreira de um professor sejam acomodados como licenças sabáticas para desenvolver projetos académicos ou educativos nas suas escolas e retemperar energias;

enquanto não se aprovar uma orçamentação salarial que promova os professores e os diferencie como elementos, não privilegiados, mas protegidos por uma sociedade que neles acredita e neles se revê;

enquanto não tivermos uma sociedade que se encara a si mesma como educada;

enquanto não tivermos um governo, um sindicalismo, uma imprensa e uma comunidade dispostas a pôr as mãos no fogo pela educação, nunca deixaremos de ter professores em estado de ebulição e, à sua volta, em berraria ou em surdina, uma turba de gente petulante e tartufa que se resigna e consome, falida, a pagar os proverbiais custos da ignorância.

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