País

O altar-palco dos exames nacionais

A pergunta que permanece por responder é sempre a mesma: por que razão se desconfia tanto dos professores? Por que motivo as classificações obtidas durante o secundário não servem para recrutar os estudantes de uma qualquer faculdade? O que julgam que vão encontrar com os exames nacionais? Os melhores? Desenganem-se.

Rui Correia

Quem visita uma reserva africana e se prepara para fazer um safari sabe que vai acordar aí por volta das 5 da manhã, enfia-se dentro de um jipe e vai calcorrear uma boa série de quilómetros até conseguir vislumbrar os mais ferozes animais do planeta. Com sorte, pode até ser que consiga assistir a um embate entre duas feras que, ignorando os visitantes, continuam na sua lida diária de sobrevivência.

Quem não acha graça nenhuma a isto são os guias do parque, preocupados como estão em preservar a integridade da vida animal. Há mesmo casos em que chegam a intervir para evitar alguns ferimentos excessivos ou mesmo mortes entre espécies ameaçadas. Quanto aos visitantes, as cenas são inesquecíveis e observam calados a tudo, tentando absorver a intensidade telúrica do que estão a ver.

Deste lado do ringue

Assim se sente um professor quando assiste ao combate feroz que hoje se trava – finalmente - entre os ministérios que tutelam o ensino superior e o ensino básico e secundário. A batalha é ancestral mas assume agora uma feição histórica. O Ministério da Educação – que tutela o ensino básico e secundário – parece estar a recrutar a vontade política de enveredar por uma via que ninguém acreditava ter a coragem de assumir: o fim dos exames do secundário no acesso à universidade. Do outro lado do ringue, o Ministério que tutela o ensino superior pretende ampliar o peso a atribuir à nota dos exames nacionais para o acesso aos bancos das universidades, dos actuais 30% para 50%.

Escusado será dizer que logo pularam de todas as tocas aqueles que não têm nem querem ter alunos do secundário todos os dias pela manhã e que acham que têm coisas a dizer. É um direito e uma maldição ao mesmo tempo. Um mundo sem exames, dizem, não existe. Mesmo que não meçam o que deviam medir, os exames servem, ao menos, para mostrar alguma “realidade” do sistema que, sem eles, fica “cego” ao que se passa dentro das escolas.

Medicina é no estrangeiro

Repita-se até à exaustão: é preciso ter muita coragem para apresentar finalmente esta muito esperada proposta de supressão desse mecanismo de exclusão “cego” que são os exames nacionais. Que ninguém o duvide: por causa dos exames, são milhares os jovens que todos os anos, merecendo perfeitamente ascender no ciclo de estudos e na carreira que ambicionam, morrem na praia apenas porque não estiveram bem em dois dias da sua vida, por melhor que tenham estado durante os últimos três, seis, oito ou doze anos do seu percurso escolar.

Cada professor sabe os nomes de dezenas e dezenas de alunos seus que, faltando-lhes uma décima ou umas centésimas na sua nota final, não conseguiram entrar nos cursos que desejavam.

Quando isto sucede, assiste-se ao cortejo dos condenados. O Estado nada tem para lhes dizer. Todo o professor que acompanha os seus estudantes sabe disto: quem tem dinheiro e não tem nota suficiente, entra no ensino privado. Quem tem dinheiro, não tem nota e não quer ir para o privado, vai para o estrangeiro (perguntem à Associação Nacional de Estudantes de Medicina no Estrangeiro. Sim, existe mesmo!). Para quem não tem dinheiro, a resposta do Estado é a seguinte: “Azar o teu. Tenta de novo para o ano”.

Afinal, um ano para os filhos dos outros até passa depressa. Isto não é um sistema: é uma abdicação. A prova de que isto não é um regime virtuoso é que saem todos os anos excelentes médicos que entraram no privado com notas inferiores às exigidas no público. E fazem carreiras brilhantes. Alguns deles são pioneiros no seu ramo. Não é, decididamente, através dos exames que seleccionamos os melhores candidatos. E é apenas para isso que existem os exames. Para os identificar no meio do joio.

O delírio do tubo de ensaio

Mas voltemos atrás. Qual é o problema da existência de exames no secundário? Afinal, a vida é mesmo assim. Quem, em situação de stress emocional não se aguenta e tira más notas num exame, não merece entrar à frente daquele que, em circunstâncias semelhantes, reagiu impecavelmente. É até justo que não entre, certo? Errado. Mas errado mesmo. Era tão bom que assim fosse. Mas não é.

Há pelo menos, dois erros clamorosos nesta tese: primeiro, os seres humanos não são ratos de laboratório, nem vivem em tubos de ensaio transparentes. Em educação não há, nunca houve, “circunstâncias semelhantes” e muito menos idênticas, em situação nenhuma. É um delírio. Um devaneio caro. Era interessante que houvesse, mas seria demasiado aterrador.

Aliás, aqueles que são muito a favor dos exames são exactamente os mesmos que aplaudem quando ouvem dizer que muitos empresários preferem de longe contratar um tipo com – como dizer isto? - vigor e diligência, a dar o litro pela empresa, do que um candidato indolente com um diploma. Claro que o ideal é ter diplomados com “vigor e diligência”. E há muitos. Mas o problema é que “vigor” e “diligência” não são coisas que se meçam nos exames do secundário. Só por sorte se consegue o dois em um.

A balança do silêncio

O outro erro básico é que todos sabemos de jovens que simplesmente tiveram azar num dia marcado que, por acaso, era o dia do exame nacional.

A resposta para estes candidatos a ex-candidatos é: “temos pena”. E nada mais. E fazemos isto por sistema. Aquilo que mais assombra nisto é que, como sempre assim foi, quase nem parece mal que assim continue a ser. E lá ficam estes rapazes e raparigas, às voltas no seu aquário, todos numa espécie de limbo anual à espera de serem nova e duplamente amestrados para responder a todas as matrizes de exames dos passados cinco anos àquela disciplina. E é precisamente isto que choca um professor e um pai.

É que este “sistema” não tem qualquer problema em olimpicamente ignorar tudo quanto o jovem foi ao longo dos últimos anos, no que diz respeito ao seu desempenho escolar. E na sua classificação de acesso ao ensino superior quer-se colocar num prato da balança – repare-se bem – aquilo que ele foi capaz de fazer em duas horas - e no outro prato da balança tudo quanto o jovem foi capaz de fazer nos últimos três anos. E pretende-se que valham exactamente o mesmo.

O secundário não é de fiar

O sistema defende, assim, que um exame nacional consegue medir em duas horas – com tolerância de 30 minutos - aquilo que professores habilitados não conseguem medir em três anos de secundário.

E é esta desacreditação que aqui se condena. A confiança que se atribui a uma matriz de exame é igual à que se atribui às dezenas de professores que estudaram, orientaram, conheceram, acompanharam e classificaram esse aluno. Durante três anos. Esta desconfiança institucionalizada no ensino secundário é intolerável e tem de terminar. E todos ganham com isso. Todos.

Além do mais é incompreensível que seja o ensino secundário a pagar logisticamente todo o orçamento do acesso à universidade. Outros quinhentos.

A discussão sobre os exames não se faz entre o sim e o não. O bom e o mau. O branco e o preto. Faz-se com profissionalismo. Um exame não é um desfecho. Um exame constitui um instrumento importantíssimo para a aprendizagem.

Colocar alguém em situação de tensão e exigir que, num dado momento, num dado dia, seja capaz de responder cabalmente a um exigente conjunto de desafios é uma ferramenta preciosa, um instrumento poderoso para melhor compreender as necessidades de aprendizagem de alguém. Mas tem de haver algo a fazer depois de um exame.

Um exame sem um plano de prosseguimento de estudo é uma ociosidade sem qualquer dignidade. Se, numa carreira de tiro, percebemos que alguém falha o alvo, temos, doravante, de preparar o treino apropriado, decorrente do que se aprendeu com a prova. Errar é indispensável para perceber o que tem de ser corrigido. O exame tem essa função mediadora entre o que temos e o que queremos obter. Entender o exame como a jusante de uma aprendizagem é saber quase nada sobre aprendizagem. O exame é muito melhor como mecanismo de aprendizagem do que como dispositivo de classificação.

O altar-palco da discriminação

A pergunta que permanece por responder é sempre a mesma: por que razão se desconfia tanto dos professores? Por que motivo as classificações obtidas durante o secundário não servem para recrutar os estudantes de uma qualquer faculdade? O que julgam que vão encontrar com os exames nacionais? Os melhores? Desenganem-se. Muitos dos meus melhores alunos não entraram nos cursos que queriam, por quase nada.

Os exames não podem converter-se no altar-palco da discriminação sem que alguém ou algum ministério se imponha. Os exames não podem continuar a ser a foz do ensino secundário. O secundário tem de recuperar uma dignidade e uma autonomia que desbaratou. O ensino secundário tem em Portugal uma tradição de competência e qualidade que ninguém contesta. Os professores sabem o que fazem. Sabem como avaliar os seus alunos. Imagine-se um sistema em que, sendo mesmo inevitável impor numerus clausus, temos de fazer uma selecção entre os alunos que terminam o secundário. Por que motivo a classificação dos últimos três anos não é aceite como o mais competente e longitudinal retrato de um candidato? Só existe uma forma de entender isto: não se acredita nos professores do secundário.

E se conversássemos mais?

Vale a pena perguntar “porquê?”. Imagine-se que as universidades passavam a dar-se muito mais do que se dão com as escolas secundárias. Em Portugal, as universidades têm um relacionamento muito mais frequente com as empresas do que com o ensino secundário.

Imagine-se o que podíamos todos ganhar com uma maior articulação entre ciclos de ensino: por um lado, os professores do superior podiam envolver-se com novos formatos de aprendizagem e avaliação que teimam em não se impor no ensino superior e são correntes no secundário. Ganhávamos melhores professores do superior.

Por outro, a presença regular de professores do superior no secundário tornaria ainda melhores os professores do secundário, que desse modo se actualizariam cientificamente numa base de comunicação fluente e regular entre ciclos. Ganhava-se melhores alunos no superior porque já vinham com um amplo entendimento do que deles se espera no superior. (Basta escutar o que dizem os professores do superior acerca da “qualidade” dos alunos que vêem entrar nas suas salas de aula. Não têm conto as vezes que amigos meus, docentes do politécnico ou do superior, me desabafam como é frustrante assistir ao decréscimo de nível cultural das gerações que lhes chegam às mãos). Todos ganhamos com este diálogo.

A espada de Dâmocles

Quem anda por este país em congressos sobre educação sabe que quase todos os especialistas concluem que a necessária modernização das práticas docentes e métodos de aprendizagem encontra sempre um travão implacável: os exames nacionais.

Professores do secundário que queiram inovar ou que queiram fazer as coisas de um modo que vá ao encontro do que os nossos tempos lhes impõem, não o fazem por uma razão simples: os conteúdos que saem no exame têm de ser dados num curto espaço de tempo. Muitas vezes sem ligar àquilo que os alunos sabem fazer, porque não há tempo para experimentações ou contemporaneidades.

O arrojo e a novidade educativas não entram no cardápio de um professor que tenha, como sabe ter, uma espada de Dâmocles chamada exames nacionais para o decepar a todo o momento. Nenhuma inovação resiste aos exames nacionais. Tudo é feito com o propósito único de adestrar gente para um único estímulo. E o estímulo não é o de ficar a saber mais e melhor sobre as coisas. É o de “tirar” uma classificação.

O secundário converteu-se numa antecâmara do superior. Está transformado numa linha de montagem de classificações onde o saber e o conhecimento produtivo, crítico e original, não têm qualquer cabimento. Porque não serão medidos.

Daqui o meu aplauso sonoro à presente e corajosa intimação do Ministério da Educação. É hora de acabar com o que não faz sentido nenhum. Nem estatístico – porque mede mal o que se pretende que meça bem – nem pedagógico – porque ignora demasiado do que cada candidato na realidade é e, consistentemente, tem sido ao longo da sua vida escolar.

Quem, ainda assim, considera que os exames nacionais são um mal menor, com um institucional e mensurólatra interesse estatístico, não visitou essa Normandia onde todos os anos desembarcam e morrem, sob fogo inimigo, tantos filhos dos portugueses. A equidade não é a sua praia.

Últimas