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Professores: a Grande Depressão

O professor, todos o sabem, é a melhor coisa que há no mundo depois do pão às fatias. Mas o ambiente nas escolas, calha bem a metáfora, é de cortar à faca.

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Rui Correia

E ali estava ele no túnel inundado. Com água pela cintura, às voltas com um automóvel capturado pelo dilúvio inesperado das chuvas de Janeiro. O herói sapador. Um soldado desconhecido. Logo de manhãzinha. Que ninguém duvide: há vidas mais difíceis e meritórias do que outras. Alcatroar estradas. Limpar esgotos. Entrevistar políticos. Ser mascote promocional. Operador de telemarketing. Guarda no Palácio de Buckingham. Entrevistar políticos. E outras, muitas outras ainda mais péssimas. Fazem-se listas disto. Curiosamente, em nenhuma delas se inclui a de professor. O professor, todos o sabem, é a melhor coisa que há no mundo depois do pão às fatias. A educação, então, ainda é melhor do que o professor. Todo o discurso político vive num constante estado de arrebatamento e paixão assolapada pela educação. Toda a gente adora a educação. Gostar de professores torna-se, portanto, uma inevitabilidade.

Os professores pagam as contas da casa da maioria dos psiquiatras deste país

Mas se ser professor é a melhor coisa que há no mundo depois do pão às fatias, o ambiente nas escolas, calha bem a metáfora, é de cortar à faca. No meio de tanto amor por uma profissão que todos sabem ser tão seminal e inspiradora, os professores habitam hoje um persistente estado de “Grande Depressão”.

Poucas expressões serão mais explícitas do que esta que nos chega dos anos 30 do século passado para falar do que se passa dentro da escola : A Grande Depressão. Não se pense que é hipérbole ou uma comiseração que vitima os 130 mil professores que há em Portugal. O ambiente é mesmo de esgotamento e de engulho.

Os professores pagam as contas da casa da maioria dos psicólogos e psiquiatras deste país. A quantidade de professores a atingir estados de desfalque emocional e físico pode medir-se pelo absentismo docente. Um absentismo que burla as estatísticas. E burla-as porque ninguém quer dedicar um segundo útil que seja a acautelar o absentismo docente. Afinal, nunca se fala de absentismo docente a não ser como sinónimo de absentismo fraudulento. E esta é a razão principal da pandemia de infelicidade encardida que se abateu sobre os professores. É por causa desta incoerência generalizada com que se trata a escola.

O absentismo docente por doença é uma catástrofe genuína que nada nem ninguém procura temperar ou recompor. Apenas vilipendiar. É um verdadeiro “Crash” profissional. O absentismo docente é meramente visto como corruptela e sintoma da negligência dos professores. São incontáveis as parangonas de jornais que referem as estimativas de falsos atestados médicos e falsas declarações sobre a situação de saúde dos professores. Nada mais interessa senão o pelourinho. Tudo é feito a partir de julgamentos de intenção, sofismas de desacreditação.

Separar o trigo do joio, para que melhor se fustigue o joio

Os professores são uns malandros porque há professores que são uns malandros. E esta lógica preside a toda a discussão pública sobre o assunto.

E já se sabe que sempre que há parangonas, há gente espavorida. E nada é mais perdulário do que gente espavorida a tomar decisões. E a escrever acórdãos. E decretos. E despachos. E todos se esquecem dos professores que vivem de rastos e se erguem numa sala de aula com alunos a mais, frio a mais, juízo a menos e desmazelo a mais e com um sorriso na cara e uma energia que se vai buscar não se sabe bem onde.

Ninguém cuida dos professores. E, como diz o divino Cantor, não se cuida porque não se ama. Todos os dias os decepcionamos. Todos os dias se fala de quanto ganham muito, de quanto faltam, de quanto são incompetentes, de quanto abusam dos seus alunos, de quanto odeiam ser avaliados, de quanto detestam ter muitos alunos, de quanto não servem para nada porque “quem não sabe fazer, ensina”.

Todos adoram esse desporto nacional que é o de distinguir os péssimos professores dos outros que são uma maravilha. Queremo-los divididos. Queremos separar o trigo do joio, para que melhor se fustigue o joio. Temos uma opinião pública feita de palha. Uma gigantesca “Dust Bowl” que torna qualquer campo fértil num terreno carcomido e impróprio para a Cultura. Para o cultivo do que quer que seja. Este preconceito rústico e rude contra os professores, adubado mediaticamente todas as semanas, esta falta de esmero para com uma classe que ano após ano, dia após dia, década após década, consegue pôr de pé um sistema que não daria um passo sem a generosidade dos seus profissionais representa a razão central desta tristeza e desta úlcera.

Sala de professores inundada de lágrimas

Os nossos professores estão desolados com a comunidade escolar. Desiludidos com ela. Tiramos-lhes o tapete quando um deles é espancado por um desmiolado que teve a imprevidente temeridade de ter filhos. As escolas deviam fechar a porta por uma semana sempre que um professor fosse agredido. É uma ferida que não cicatriza. Ninguém quer saber do dano público que isso representa e todos se preparam para aceitar que, se o professor “levou nas ventas”, é porque mereceu. Repitamo-lo as vezes que forem necessárias: a vida dentro de uma escola funciona muito melhor do que fora dela. Estudar funciona.

O Dr. Laborinho Lúcio anda há anos a pedir que se celebre o início do ano escolar com uma grande festa nacional com pompa e circunstância. Anual. Pontual. Colorida. Festiva. Que se viva a alegria de saber e de aprender. Que se conheça o benefício de estudar e de ser culto. Que todos nos envolvamos na ideia pela qual a escola é um ginásio da curiosidade e das mentes que brilham. Porque é. Porque é refulgente o brilho que em cada sala irrompe, vezes sem conta, na vida de um professor. Porque a sala de professores está sempre ocupada com gente que se comove até às lágrimas por gestos de pura superação, de génio, ingénuo, dos seus alunos. Mas uma sala inundada de lágrimas, também pela iniquidade com que muitos miúdos tratam os seus professores; um desprezo aprendido em casa, exorbitado nos jornais, assanhado nas redes sociais. Uma pandemia sem máscaras de ignorância descarada que entra pelas escolas adentro, pelas salas de aula adentro.

O Quarto escuro

E perguntam por que motivo se levantam e se insurgem os professores. Entenda-se bem. Os professores não se levantam e não se insurgem porque se afirma sem rebuço que um governo "não terá outro remédio" senão demitir-se se o Parlamento aprovar a reposição integral do tempo durante o qual as suas carreiras estiveram congeladas.

Não se revoltam porque se sentencia que "Nem daqui a dez anos" será possível devolver esse tempo.

Não se revoltam porque vivem há décadas a centenas de quilómetros de casa.

Não se indignam porque um nomadismo contínuo não dá a qualquer pessoa sensata a oportunidade de comprar casa ou constituir família.

Não andam zangados porque trabalham há vinte anos e não passam do Quarto escuro – que é o nome que devia dar-se ao escalão remuneratório donde nunca se passa sem dissabores de toda a ordem.

Não se esgotam porque têm cerca de 40 plataformas digitais para trabalhar e lançar redundantemente os mesmos dados.

Não se zangam por verem que os “Planos individuais de Trabalho”, as "medidas universais de suporte à aprendizagem" aos alunos carecidos de apoio e quejandos não passam de emojis administrativos sem a menor utilidade e que todos têm de fazer de conta que servem para alguma coisa.

Os professores não se revoltam porque sempre alertaram para a irresponsabilidade que foi a regra de fechar a porta a novos professores durante a Troika. Um erro histórico e tosco, por cujas vistas curtas e grossas, pagamos agora a triplicar e dentro de alguns anos a centuplicar.

Os professores não se impacientam por terem um sistema de avaliação e progressão na carreira em que rigorosamente ninguém acredita. Perceba-se o nível da coisa: não existe hoje uma única pessoa no Ministério da Educação que defenda o sistema de avaliação docente tal como ele existe. Nem uma. Apenas se escrevem coisas para pretender que não é tão torpe como é. Não se aguentava um dia numa empresa privada, despedido à gargalhada.

A avaliação de professores em Portugal é um enxovalho irremediável e uma infâmia para todos os envolvidos.

A escola e o professor são reserva de sanidade dos nossos miúdos

Os professores não deixarão de se revoltar se os entraves à progressão das suas carreiras deixarem, justa e finalmente, de ser tão indevidos e abusivos.

Os professores não irão deixar de se amotinar se perceberem que este é um país pequeno de mais para tanta papelada e digitalada inútil.

Não deixarão de se sublevar quando lhes for devolvida a capacidade democrática de eleger livremente os seus líderes e o Ministério se emancipar do medo da democracia.

Os professores continuarão a insubordinar-se porque é para isso que o Estado deve pagar aos seus professores. Para que sejam o repositório do poder crítico e criativo de uma Nação. Para que, à falta de melhor, seja a escola o campo de batalha da insubmissão, a seara da criação, a indústria da exigência.

A escola e o professor são cada vez mais a reserva de sanidade dos nossos miúdos. Para muitos deles a escola representa o único lugar onde a demência não impera. Por isso lá ficam o dia todo. Não apenas porque não são bem-vindos em mais nenhum lado, mas porque é ali que aprendem o bê-á-bá do civismo e da boa educação. E depois, sempre depois do elementar, a cultura. Nenhum edifício numa cidade fala de Montaigne, ou Seurat, ou Bohr, ou Tocqueville, ou Descartes, ou Gauss, ou Smith, ou Ford, ou Pascal, ou a Carminho e o Chico Buarque senão numa escola. Mais nenhum lugar o faz todos os dias. São lugares onde se dança a Cultura.

A escola e o seu New Deal

É por isso que os professores estão desolados. Porque a comunidade se esboroa desgraçadamente nas mãos dos ignorantes e quem rema em sentido oposto é maltratado, malquisto e mal pago. Como da outra vez, esta Grande Depressão reclama um “New Deal” para os professores e para a Educação. Cuidar. É patriótico um investimento nessa obra pública, essa formidável “Hoover Dam” que é cada um dos nossos garotos. É neles que um professor pensa quando desiste de abandonar de vez a profissão.

Por todo o lado se ouve: “Estou aqui por causa dos meus alunos”. Não, não é pieguice. Todos conhecem um professor. Pergunte-se-lhe se assim não é. E essa não é a razão certa para continuar a ser professor. A razão certa para o ser é porque não existem, nunca existirão, miúdos que se inspirem e se iluminem por professores frustrados e prostrados.

Rui Correia é professor e escreve para o espaço de opinião do site da SIC Notícias.

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