Opinião

Chega de falinhas mansas sobre "isso" da saúde mental

Estamos a fazê-los acreditar que "isso" passa. Que uma maleita do corpo seria pior. Que não precisam de terapia quando todos devíamos fazê-la para não chegarmos tarde a nós próprios. De uma forma quase ofensiva, querem fazer-nos acreditar que está a fazer-se tanto e que agora é que é. Lamento, não é e não chega. Ontem já era tarde demais.

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SIC Notícias

Num dia qualquer, sem aviso prévio, acordou sem forças para se levantar da cama. Já estava atrasada, mas o corpo não reagia à urgência do alarme. Só conseguiu arrastar-se para o duche, quando a ansiedade se distraiu por uns segundos, cansada de mais uma noite sem dormir. Lenta, irritada sem razão aparente, agitada com a magra paciência de quem está a encher um copo há demasiado tempo, deixou passar o dia sem se fazer notar.

Cada tarefa básica tinha o peso de uma negociação de paz no Médio Oriente. O simples ato de respirar não conseguia cumprir a missão sem interrupções. Tentava encontrar a alegria e o entusiasmo que sempre vestiu, mas estava nua. E se alguém vê?

Enquanto fazia o que tinha para fazer em piloto automático, contava os minutos para a hora de saída, sempre de auscultadores na cabeça para afastar conversas desnecessárias, sempre com vergonha de já não conseguir dar o que sempre deu. Na cabeça, só gavetas abertas e desarrumadas e a angústia de ter perdido o talento algures. Onde terá ficado?

Com o passar dos dias chegaram as explosões desproporcionadas, a sensibilidade no expoente máximo, as pausas forçadas para rebentar às escondidas e o medo de não ser capaz de fazer o que antes fazia sem ter de pensar. Mais tarde, vieram as desculpas inventadas para faltar a jantares, aniversários e cafés. Para não atender o telefone. Para não sair de casa.

Não demorou muito até chegar o silêncio. Nessa altura, já só se ouvia o permanente descompasso do coração e uma enxurrada de pensamentos a atropelarem-se uns aos outros, sem piedade. Incapaz de continuar a suportar o peso do mundo nos ombros sem que o mundo lhe tenha pedido para o fazer, o corpo começou a dar sinais de que já não estava disponível para aceitar a carga que a cabeça exigia.

Vieram as tonturas, os desequilíbrios e uma espécie de quebras de tensão em que não era a tensão que quebrava. Mas foi só no dia em que não conseguiu descer as escadas de casa para ir trabalhar, que percebeu que estava na hora de parar e pedir ajuda.

Sete longos meses de vida suspensa que acabaram hoje

Entretanto, passaram mais de sete meses. Sete longos meses de vida suspensa que acabaram hoje, no primeiro dia de uma nova vida que traz de volta uma quase normalidade, ainda com a bengala de um pequeno comprimido que ajuda a expulsar a tristeza desnecessária. Que seja. Vamos.

A caminho do recomeço, algures na A5, entre a alegria do regresso à rotina e a ansiedade (agora) controlada de voltar à realidade, ouviu um psicólogo na rádio, que alertava para a falta de profissionais da área no Serviço Nacional de Saúde. Outro convidado, que não chegou a perceber quem era, argumentava que felizmente há a opção de procurar ajuda no privado. Será que há? Para quem? A que custo?

Quando deu por ela, parada no trânsito do viaduto Duarte Pacheco, vieram-lhe à cabeça os solavancos dos últimos meses. Apercebeu-se de que está hoje estacionada num lugar de profunda indignação, em relação a tudo o que toca o tema da saúde mental. Não consegue tolerar nem mais um discurso pomposo e inconsequente. Não está disposta a suportar nem mais uma conversa superficial, de quem não faz ideia do que está a falar. Não aguenta mais o flagelo da falta de noção em relação a um problema que alguns ainda veem como um capricho, um pretexto ou um luxo. Chega de boas intenções e de promessas vazias.

A sério que são precisos cinco anos para escolher 40 psicólogos?

Como é que podemos achar normal viver num país em que há pessoas que esperam um ano e meio por uma consulta com um psicólogo, no Serviço Nacional de Saúde? Segundo dados do setor, dos cerca de 25 mil psicólogos que existem em Portugal, apenas mil estão no público. O Governo viu-se obrigado a reconhecer a insuficiência e prometeu contratar mais. É verdade que contratou. Mas a sério que são precisos cinco anos para escolher 40 psicólogos? Isso mesmo. C-i-n-c-o anos. Q-u-a-r-e-n-t-a psicólogos. Agora é que é, asseguram. Ontem é que era.

No privado, os preços das consultas fizeram da psicoterapia um luxo. Quem tem 60 euros (com sorte) para dar por algo que nem sangra, nem se vê e até dá para fingir que não existe? 240 euros por mês, se quiser ir uma vez por semana. Ela teve a sorte de poder pagar. Só dava para ir de 15 em 15 dias, mas era melhor do que nada. Quando fez uma ronda pelas seguradoras, percebeu rapidamente que, na esmagadora maioria dos casos, não é uma prioridade. Ao telefone com uma delas, percebeu que para cobrir "isso da saúde mental" tinha de ser o plano mais caro e, mesmo esse, só cobria quatro consultas. De psiquiatria, porque os psicólogos não contam. Esta é a parte em que as seguradoras sublinham o investimento que foi feito desde a pandemia para abranger a saúde mental nas apólices. Lamento, não chega. Os pouquíssimos seguros que o fazem, de forma ilimitada, têm preços proibitivos.

Ela precisou de consultas a dobrar. Com uma psicóloga e um psiquiatra, porque quando encontrou forças para sair da negação, só a terapia já não chegava para travar a avalanche. Ela, que nunca tinha tomado um comprimido para dormir, teve de abandonar preconceitos e aceitar o empurrão que só a ajuda química podia dar. Nem queria acreditar quando o farmacêutico acabou de somar os preços dos antidepressivos, dos ansiolíticos e das vitaminas necessárias para compensar. Só na primeira vez deixou 100 euros na farmácia.

Depois do shutdown de um primeiro mês em que não conseguiu sair de casa e foram poucas as horas que passou acordada, o corpo e a cabeça começaram a reagir. Aos poucos, começou a ganhar energia para se levantar, para comer, para responder a algumas das mensagens que deixou penduradas. Bem mais tarde, conseguiu ir beber café só com um amigo, depois dois, depois três. Só quatro meses depois conseguiu estar no meio de mais pessoas. Foi a medo que, depois da hibernação, arriscou ir ver um concerto de A Garota Não no terraço do Lux, à hora do pôr do sol. Ainda bem que foi. A letra dizia que a protagonista da história só não morreu por não ter jeito. Ela sorriu e chorou.

Ao fim de três baixas renovadas foi chamada a uma junta médica. A psicóloga e o psiquiatra avisaram que era escassa a sensibilidade para doenças como a depressão e o burnout. Contaram histórias de pacientes que foram forçados a voltar ao trabalho antes de estarem prontos para o fazer, porque alguém decidiu que estar deprimido não é isso tudo. Sentia-se nervosa, como se pudesse não ser suficientemente grave a dor que sentia. Como se tivesse de provar que "isso" da depressão é tão incapacitante como uma fratura exposta ou um corte profundo. Como se tivesse de explicar que "isso" surge de forma tão intensa e inesperada como um tumor maligno. Que "isso" nos destrói por dentro e nos isola. Que isso nos mata.

O médico que a recebeu nem abriu o relatório da psicóloga. "Isso não interessa"

O do psiquiatra quis ver, mas saltou a descrição da doença para ir diretamente para a lista da medicação, como se a dor dela pudesse ser medida pela quantidade de químicos que estava a tomar. "Então está deprimida, é?"; "É."; "Chateou-se com coisas lá do trabalho, é isso? Sabe que quanto mais tempo ficar de baixa, mais difícil é voltar." Não me diga, pensou ela. A frieza, o ar inquisitório e desconfiado, a insistência em perguntas repetidas para avaliar a consistência das respostas e a tentativa de simplificação barata de um dos piores momentos da vida de alguém. Não é aceitável.

Claro que há casos de baixas fraudulentas. Mas está tudo errado quando a regra é partir da premissa que a pessoa está a mentir. A exagerar. A tentar arranjar um pretexto para umas férias pagas. Ninguém finge uma depressão - mais facilmente se finge não a ter. Saiu do gabinete a rebentar de raiva, com as lágrimas a querer saltar dos olhos e a apertar as mãos com toda a força para não gritar com aquela pessoa fria e indiferente, sentada numa cadeira que aparentemente lhe roubou a humanidade e lhe deu o poder de decidir sobre a vida dos outros com ligeireza. No fim da conversa, decidiu pôr um carimbo que validava a renovação da baixa. Mas ela saiu de lá com um sentimento de culpa inexplicável. Será que era por ser fraca que não conseguia voltar já ao trabalho.

Despediu-se uns meses depois

Sem planos. Sem pensar no que faria a seguir. Sabia que nunca mais conseguiria voltar ao sítio onde foi tão feliz e tão profundamente triste. A um sítio que se tornou tóxico por tudo o que representava. A vida pedia-lhe uma mudança e um salto de fé.

Por esta altura, é muito provável que não seja grande surpresa para quem me lê, que ela sou eu. Mas esta história não é sobre mim. Não é mesmo. É sobre todas as pessoas que neste momento precisam de ajuda para lutar contra uma doença que mata. Não é justo que tenham de esperar um ano e meio. Não é justo que tenham de escolher entre o psicólogo e o supermercado. Não é aceitável que não tenham dinheiro para comprar os medicamentos de que precisam. Não é humano fazê-las duvidar da dimensão da dor que sentem. Já basta a luta que tantos travam para admitir que estão doentes. Que precisam de ajuda. Onde está ela, quando não há psicólogos suficientes nos centros de saúde? Quando os seguros não cobrem "isso"? Quando ainda faltam psicólogos nas escolas? Quando as empresas ainda não pararam para perceber que, só no ano passado, a saúde mental dos trabalhadores provocou mais de cinco mil milhões de euros de perdas. Não seria mais inteligente investir na prevenção?

"Isso" da saúde mental tornou-se a minha especialidade não coberta nos últimos meses. Atropelou-me, testou a minha resistência e obrigou-me a mudar de vida. Tive a coragem e a sorte de encontrar a ajuda de que precisava e hoje estou bem, tranquila e feliz. Mas não consigo mais ficar calada quando me acenam com "40 psicólogos", campanhas bonitas e garantias de "um grande esforço", enquanto à minha volta vejo tanta gente a precisar de ajuda sem poder tê-la.

Estamos a fazê-los acreditar que "isso" passa. Que uma maleita do corpo seria pior. Que não precisam de terapia quando todos devíamos fazê-la para não chegarmos tarde a nós próprios. De uma forma quase ofensiva, querem fazer-nos acreditar que está a fazer-se tanto e que agora é que é. Lamento, não é e não chega. Ontem já era tarde demais.


Texto de Débora Henriques

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