Saúde Mental

Nova lei da saúde mental: o fim dos casos "impensáveis" a nível dos direitos humanos

A lei já foi promulgada e entra em vigor a 20 de agosto. Para Miguel Xavier, professor catedrático de Psiquiatria e Saúde Mental e diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental, a lei anterior já não cumpria com os desenvolvimentos e mudanças de paradigma a respeito dos direitos humanos básicos. Saiba o que muda na legislação.

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Maria Madalena Freire

A lei de saúde mental que existe há cerca de 20 anos vai sofrer alterações a partir de 20 de agosto, marcando um novo passo de cumprimento de direitos humanos, como explica Miguel Xavier.

A nova Lei da Saúde Mental acaba com a possibilidade de prolongamento automático do internamento de inimputáveis e continua a admitir o internamento compulsivo, porém como último recurso.

A SIC Notícias conversou com Miguel Xavier, diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental, para explicar a importância da nova lei e o que, de facto, muda.

Direitos humanos mudaram

Todas as alterações da lei se baseiam numa mudança de mentalidades no que diz respeito aos direitos humanos. Para Miguel Xavier, Portugal já estava atrasado e era, até, sinalizado variadas vezes por entidades internacionais devido às suas condutas no que diz respeito ao tratamento de doentes mentais.

A nova lei vem substituir a de 1998 que, já era “boa e bastante avançada”, mas desatualizada.

“Simplesmente, nos últimos 20 anos, houve várias coisas que mudaram no campo científico, mas acima de tudo no campo dos direitos humanos. Todos os países na Europa estão em processos de adaptação das suas leis de saúde mental devido à mudança dos direitos humanos”, explica.

Segundo Miguel Xavier, tudo mudou com a Convenção dos Direitos de Pessoas com Deficiência - CRPD - que acabou por ser uma recomendação internacional que veio mudar os requisitos mínimos de direitos humanos e obrigou os países a repensarem as suas leis.

Uma dessas mudanças com a CRPD foi, naturalmente, a estipulação dos mesmos direitos a quem seja incapacitado ou não, física ou mentalmente.

"Um exemplo de um direito que não existia na lei portuguesa era o de votar. Quem tinha doença mental grave e reconhecido assim, não tinha direito de votar. Já passaram a ter”, elucida.

Internamento compulsivo

Na nova lei promulgada pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o internamento compulsivo é ainda admitido - tal como em 1998 -, no entanto com novas regras e estipulações.

Como explica o professor de Psiquiatria e Saúde Mental, existem novas correntes “radicais” dos últimos 20 anos que querem o término completo do internamento involuntário - isto é, de internar contra a vontade expressa da própria pessoa.

Porém, na lei portuguesa, essa perspetiva não foi incluída.

“Mantém-se, mas os requisitos para a sua execução tornam-se mais estritos para que se consiga utilizar este internamento como o último recurso, depois de tudo o resto. É uma posição equilibrada. Há situações críticas em que o internamento involuntário é necessário, mas concordamos que deve ser encarado como último recurso”, evidencia Miguel Xavier.

O que é “tudo o resto”?

Para o internamento compulsivo não ser a medida imediata, como um penso rápido para uma ferida mais profunda, Miguel Xavier explica que tem de haver uma mudança do modelo de prestação de cuidados.

“Se tivermos um modelo baseado fundamentalmente no hospital, nunca vamos conseguir a proximidade necessária ao seguimento das pessoas que têm uma característica", detalha e acrescenta que “os países devem fazer todos os esforços para montarem sistemas de saúde mental através do desenvolvimento de prestação na comunidade próximo das pessoas".

Quanto mais próximo, mais fácil será seguir as pessoas em continuidade e, assim, diminui-se o número de situações de internamento involuntário.

“Modelo mais próximo, com terapeuta de residência e é continuamente avaliado e às suas necessidades, podendo haver uma previsão de descompensação, havendo uma intervenção terapêutica imediata”, conclui.

O fim do prolongamento automático

Por fim, uma das alterações mais importantes, para Miguel Xavier, é o fim do prolongamento automático do internamento de inimputáveis. Para diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental, esta prática atentava contra direitos humanos básicos e chegou a haver casos “vergonhosos” em Portugal.

“O que se passava até agora é que Portugal tinha uma lei no Código Penal que permitia que as medidas de segurança dos doentes inimputáveis fossem prorrogadas sucessivamente. Sabemos que na lei penal geral, a pessoa cumpre a sua pena e sai, não fica mais tempo nenhum”, sublinha.

Perante esta prática de prolongamento aos inimputáveis, Portugal vinha a ser alvo, há vários anos, de recomendações cada vez “mais diretas” da União Europeia. Miguel Xavier relembra que, de dois em dois anos, Portugal é visitado pelo Comité de Prevenção de Tortura e faz a sua ronda pelas prisões, esquadras e serviços onde as pessoas estão internadas.

Após estas visitas é feito um relatório, onde as conclusões não têm sido as melhores.

“Era sempre a dizer que Portugal tem de acabar com esta lei e que tem de se assemelhar aos outros países da Europa, porque em qualquer outro país este prolongamento é proibido. Quando acaba a sua medida de segurança, tem de sair. Os serviços de saúde mental têm de fazer a sua parte. Ninguém pode ter uma prisão perpétua, às tantas é o que é”, compara o professor.

No seguimento, Miguel Xavier recorda-se de um momento em que o Comité foi a um hospital e pediu para ver um processo aleatório. Nisto, encontraram uma pessoa que já tinha terminado a sua medida de segurança, já estava cumprida há sete anos e continuava internada.

"Ninguém conseguia dar uma explicação e, às tantas, disseram que continuava internada porque não tinha para onde ir. Isto é impensável do ponto de vista dos direitos humanos" , confessa.

Para Miguel Xavier, era uma situação que “envergonhava” e finalmente, com esta lei, isso mudou.

A nova liberdade

Agora, a saída dos internados "indevidamente" está a ser acompanhada por um grupo de trabalho composto pelo Ministério da Saúde, do Trabalho, da Justiça e as unidades forenses. Encontra-se, então, uma solução residencial, sendo que a maioria dos internados perderam os contactos familiares, e, dependendo do sítio onde forem viver, os serviços de saúde mental dessa zona terão de seguir com proximidade e continuidade essa pessoa.

Segundo Miguel Xavier, Portugal aproxima-se, com esta nova lei, da “prática generalizada em toda a Europa”.

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