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Não vivemos em tempos de paz

Uma “guerra na Europa” era uma ideia que, até há pouco tempo, nos parecia impossível, quase bizarra até. Quanto tempo mais vamos demorar a perceber o que está em causa, desde que Putin tomou a decisão brutal e impensável de 24 de fevereiro de 2022? A análise de Germano Almeida, comentador SIC, no dia em que se assinala o segundo aniversário da invasão russa em larga escala à Ucrânia.
Soldados ucranianos em Donetsk, abril de 2023
Anadolu

Germano Almeida

“Se voltar a ser normal e aceitável que as grandes potências possam amedrontar e ameaçar os seus vizinhos mais fracos, isso afetará a perceção de segurança e o modo como as pessoas, em todo o mundo, se comportam umas com as outras.” (Yuval Noah Harari, historiador e filósofo israelita)


O primeiro ano da invasão de Putin mostrou-nos que a Rússia não vai conseguir ocupar a Ucrânia toda (a este ritmo, nem um século chegava). O grande problema é que o segundo ano de guerra, que hoje se conclui, avisou-nos que a Ucrânia também não vai conseguir recuperar todo o território ocupado.

Esta guerra é existencial para os dois lados: o agredido não tem alternativa que não seja resistir; o agressor ficou sem recuo possível (cometido o erro brutal da invasão maximalista, Putin não sobreviveria internamente se fracassasse na Ucrânia).

A Rússia não foi provocada: avançou para a invasão porque Putin quis. Só por isso. Os países do alargamento a Leste não aderiram à NATO para conspirarem um ataque a Moscovo: fizeram escolha livre e democrática. A agressão russa à Ucrânia provou que esses países tinham razão em sentirem-se ameaçados pelos devaneios imperialistas de Putin.

É na Ucrânia que se define a nova fronteira da Europa democrática. A opção de milhões de ucranianos de não fugirem nem se renderem vai definir o que vier a acontecer na maior guerra em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial. Não temos o direito de os deixar sozinhos na corajosa ambição de resistir a um agressor várias vezes mais forte.

A Rússia não pode ganhar. Ponto. Se o fizesse, os autocratas sentir-se-iam autorizados a usar a força para atingirem os seus objetivos. Não podemos aceitar. É por isso que esta guerra não tem só a ver com a Ucrânia: tem a ver com todos nós. Vai a Europa estar à altura?

Moscovo nega com palavras o que faz no terreno. Mais: inverte o ónus – acusa a Ucrânia dos crimes que os russos somam na invasão. É um universo orwelliano, em que a verdade é transformada pela linguagem, imposta à força pela lei do agressor. A Rússia é uma potência anacrónica e em decadência. Esconde a degradação pelo horror. Como nos lembra Bernard-Henry Lévy: “Teremos todos que viver sob a sombra escura da destruição da Ucrânia”.

E se na Casa Branca estivesse Trump? Talvez a Ucrânia já fosse uma espécie de protetorado russo. Biden está a fazer o correto na liderança ao apoio à Ucrânia - mas não é de todo garantido que isso lhe renda ganhos eleitorais. Se os EUA voltarem a liderança isolacionista e de egoísmo nacionalista, Putin terá caminho livre. É o paradoxo temporal: ainda há guerra porque a Rússia falhou a blietzkrig dos primeiros dias, só que o prolongar do conflito por vários anos tenderá a favorecer o agressor. O relógio está a contar.

Não, a Rússia não é a vencedora

Aos olhos de hoje, parece que a Rússia está por cima e a Ucrânia a perder. Temos, por isso, que olhar para a globalidade destes dois anos.

Putin escolheu esta guerra, mas os seus planos saíram-lhe completamente furados. Acreditou que o exército ucraniano não estaria à altura da supremacia russa. Confiou em demasia na fragilidade europeia pela excessiva dependência aos combustíveis fósseis russos (sobretudo de Alemanha e alguns países do antigo Pacto de Varsóvia). Contou demasiado com o suposto “declínio americano” (invasão do Capitólio, polarização política, fracasso no Afeganistão, idade avançada do Presidente). Exagerou nas consequências do Brexit (que incitou e financiou).

Teve, nos últimos 24 meses, várias desagradáveis surpresas.

Não tomou Kiev em dias. Já passaram dois anos e isso ainda não aconteceu. Não depôs Zelensky, não provocou mudança de poder na Ucrânia para um governo fantoche a favor da Rússia. Aumentou a sua dependência estratégica em relação à China. Perdeu o mercado europeu e norte-americano.

A Rússia controla 20% do território ucraniano - mas não ocupou toda a Ucrânia e não dá mostras de o conseguir. O que significaria "negociar a paz" se nem sequer é claro quais são verdadeiramente os objetivos russos? Ceder território travaria a passada imperial de Putin? Claro que não.

Na mente do ditador

Ficou traumatizado com a capitulação da RDA na queda do muro de Berlim. “O ponto mais importante para compreender Putin é pensar qual foi o acontecimento que mais abalou a sua vida: foi a experiência de ser agente do KGB em Dresden, na Alemanha Oriental, em 1989. Trabalhava diretamente com a Stasi [polícia política da República Democrática Alemã] como parte da ocupação da Alemanha Oriental e a experiência de ver ruir o Muro de Berlim a partir dessa perspetiva fê-lo querer voltar a mudar o rumo da história”, apontou Anne Applebaum, nas Conferências do Estoril de 2022.

Centralizador, é herdeiro da autocracia burocrática da URSS, que sempre serviu. Aparentemente discreto e de poucas falas, foi desenvolvendo, com os muitos anos de poder, um culto de personalidade que tem por base a figura do macho-alfa, capaz de impor pela força a grandeza perdida da Rússia histórica.

John McCain, que foi durante décadas um dos políticos norte-americanos com maiores credenciais militares e de política externa, detestava-o, ao mesmo tempo que o temia: “Putin é um assassino e nunca deixou de ter dentro de si um agente do KGB”.

Primeiro em 2008 na Geórgia (Ossétia do Sul e Abkházia), depois em 2014 (Crimeia e Donbass): Putin quis recuperar a visão de que a Rússia é o poder central da Eurásia e que tem o direito de exercer hegemonia sobre os países da região. Quis afirmar-se como o novo czar do século XXI.

A jogada da Crimeia surgiu dois anos e meio depois das manifestações em Moscovo. Serviu para repor a sua popularidade alta, exibindo postura bélica. Putin usa um conflito político atrás do outro para manter a ligação com o eleitorado.

Na Síria, segurou o aliado Assad e com isso ganhou enorme ascendente na região. Terá, com isso, ganho pontos com EUA e países europeus, porque a força russa ajudou a derrotar o Daesh. Mas o que poucos, na altura, terão antecipado é que Putin fez na Síria uma espécie de “ensaio geral” para a invasão na Ucrânia.

Enquanto isso, foi financiando e incentivando movimentos extremistas que põem em causa as democracias liberais: Le Pen em França, Brexit no Reino Unido, Donald Trump nos EUA.

Mas o mais grave estaria para vir.

O que terá levado Putin – alguém que ascendeu com igual precisão, estratégia e eficácia a um poder quase absoluto no Kremlin – a cometer tamanho erro como o de ordenar invasão total à Ucrânia?

O excesso de poder terá traído o cerebral Vladimir. Haverá saída possível?

O rosto envelhecido de Zelensky

Zelensky ficou como o rosto de uma resistência que ficará nos livros de História. Num ano, a sua cara envelheceu uma década – mas o coração de resistente nunca parou de bater forte. “Nesta guerra todos os dias são segundas-feiras”, disse aos ucranianos, num dos vídeos diários com que tem conseguido manter uma comunicação permanente, para manter a chama viva.



Ao contrário de Putin – cada vez mais distante do seu povo e inacessível em relação a quem lidera – Zelensky distingue-se por um estilo próximo, aparece ao lado dos cidadãos ucranianos, assume-se como mais um entre muitos.

Do seu destino dependerá o nosso destino coletivo enquanto europeus. Como Zelensky repetiu várias vezes desde 24 de fevereiro de 2022, “se a Ucrânia não aguentar, a Europa não aguentará”.

Houve momentos definidores: recusou o exílio americano na madrugada em que os russos poderiam ter tomado Kiev e isso sinalizou a vontade de resistência ("não preciso de boleia, preciso de munições").

E é preciso lembrar os horrores de Irpin, Bucha, Borodyanka e Mariupol. E em tantos outros locais.

PRINCIPAIS MOMENTOS DE DOIS ANOS DE GUERRA:

24 FEVEREIRO 2022 | Putin inicia invasão em larga escala da Ucrânia

27 FEVEREIRO 2022 | Russos falham tomada de Kiev

16 MAIO 2022 | Ucrânia reconquista Kharviv

14/20 SETEMBRO 2022 | Ucrânia reconquista Kupiansk, Izium e Balakliia

30 SETEMBRO 2022 | Putin anuncia anexação de Donetsk, Luhansk, Zaporíjia e Kherson

20 MAIO 2023 | Rússia conquista Bakhmut

24 JUNHO 2023 | Prigozhin desafia Putin na “Marcha pela Justiça”

23 AGOSTO 2023 | Morte de Prigozhin

16 FEVEREIRO 2024 | Russos tomam Avdiivka

AS AJUDAS E AS DÚVIDAS

O impasse americano e o dilema europeu

CONTRIBUIÇÕES DIRETAS EM EQUIPAMENTO MILITAR À UCRÂNIA DESDE 24 FEVEREIRO 2022 (em milhares de milhões de euros):

EUA - 42,2

ALEMANHA - 17,7

REINO UNIDO - 9,1

DINAMARCA - 8,4

PAÍSES BAIXOS - 4,4

NORUEGA - 3,8

POLÓNIA - 3,1

Canadá - 2,1

Suécia - 2,0

Finlândia - 1,8

(fonte: Ukraine Support Tracker, Instituto Kiel)

BÁLTICOS E NÓRDICOS, ALERTA MÁXIMO

De longe os que mais ajudam Ucrânia em % PIB:

ESTÓNIA 3,6%

DINAMARCA 2,4%

NORUEGA 1,7%

LITUÂNIA 1,5%

LETÓNIA 1,2%

Países Baixos 0,7%

Polónia 0,7%

Finlândia 0,7%

Eslováquia 0,6%

PORTUGAL 0,6%

Alemanha 0,6%

EUA 0,32%

(fonte: Ukraine Support Tracker, Instituto Kiel)

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