Com a invasão em grande escala perpetrada pela Rússia em fevereiro de 2022, a Ucrânia tornou-se no país mais minado do mundo: um título que nenhuma nação deseja deter. O Serviço de Emergência Estatal da Ucrânia estima que aproximadamente 30 por cento do território do país (170.000 quilómetros quadrados) pode estar armadilhado com minas terrestres ou munições não detonadas.
Os hospitais têm enfrentado um influxo significativo de pacientes, particularmente nas regiões Leste e Sul, de Donetsk, Kherson e Kharkiv, onde decorrem combates ativos e é mais prevalente a disseminação de minas terrestres. Nessas instalações, são prestados cuidados de emergência de estabilização e, se necessário, são realizadas intervenções cirúrgicas. Para aliviar a pressão sobre os hospitais, os pacientes são posteriormente transportados para unidades de saúde em regiões consideradas mais seguras, como Kiev e Vinnitsia, para a prestação de tratamento e cuidados de reabilitação adicionais.
O aumento de pacientes com amputações e lesões complexas criou uma necessidade crítica de especialistas médicos – especialmente fisioterapeutas – para fornecer cuidados de reabilitação pós-operatória. Segundo o Ministério de Políticas Sociais, desde a escalada da guerra em fevereiro de 2022, o número de ucranianos com deficiência aumentou em 300.000, e a procura por fisioterapeutas com experiência no tratamento de lesões agudas ou crónicas duplicou.
Tratamento fisioterapêutico
Em meados de 2022, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) iniciou um projeto para responder a necessidades de fisioterapia, em que as equipas da organização apoiavam a reabilitação atempada de feridos de guerra transferidos para hospitais em Vinnitsia e Kiev. Em colaboração com o Ministério da Saúde e o Ministério da Administração Interna, as equipas médicas da MSF começaram a executar novas técnicas, fundamentadas cientificamente, para a reabilitação e recuperação desses pacientes feridos.
“A área técnica da fisioterapia não está muito desenvolvida na Ucrânia. Não há fisioterapeutas suficientes”, avança Viktoriia Vantsarovska, fisioterapeuta que começou a trabalhar com a MSF há um ano. “As feridas que tratamos são amputações, traumas múltiplos e lesões nervosas. No início, foi muito difícil aceitar mentalmente o que eu via: nunca tinha tratado traumas de guerra assim antes.”
Para apoiar a formação e capacitação de profissionais médicos locais e de estudantes universitários, a MSF convidou fisioterapeutas com experiência prévia em conflitos armados internacionais, como no Afeganistão, Iémen, Gaza e Sudão, para partilharem experiências sobre as mais recentes técnicas de fisioterapia. A MSF realizou também dezenas de formações para ensinar métodos progressivos de reabilitação física.
A equipa de fisioterapia da MSF começou a empregar uma série de técnicas com os pacientes, como alongamentos e exercícios usando equipamentos como barras paralelas, bolas de ginástica e espaldares de madeira. Muitos pacientes enfrentavam também dores crónicas e agudas resultantes de lesões nas terminações nervosas dos membros afetados, por isso foi também aplicado um método de eletroterapia, chamado neuroestimulação elétrica transcutânea (TENS, na sigla em inglês), para proporcionar aos pacientes um alívio sintomático da dor.
“Explicamos aos pacientes que se seguirem os nossos exercícios, conseguirão tornar-se independentes novamente. Quando vemos o progresso e que os pacientes não desistem, queremos continuar a ajudá-los”, frisa Viktoriia. “Quando os vejo a usar próteses, percebo que o meu trabalho não foi em vão e fico muito feliz.”
Desde o início do projeto de reabilitação, a MSF forneceu mais de 19.000 sessões de fisioterapia a 668 pacientes. Um desses pacientes é Andrii, que tem recebido tratamento no hospital de Vinnitsia.
"Pisei uma mina terrestre na região de Donetsk em julho e desde então fiz seis cirurgias. A minha perna direita foi amputada, e também sofri lesões nos nervos do braço esquerdo.
Os fisioterapeutas tentam sempre novas atividades e abordagens para ajudar-me. Eu ficaria imobilizado sem fisioterapia", conta Andrii.
Apoio psicológico
A prestação de cuidados psicológicos é também uma parte vital do projeto de reabilitação da MSF. Os serviços de terapia ajudam os pacientes a processar experiências traumáticas, ganhar motivação para continuar a fisioterapia e aceitar melhor o novo corpo e as condições de vida. No total, foram providenciadas 2 638 sessões psicológicas a 508 pacientes e organizadas 110 atividades psicossociais em grupo.
Uma componente particularmente inovadora dos cuidados de saúde mental prestados aos pacientes amputados envolve um exercício de “espelhamento”, realizado colocando um espelho entre a perna e o que resta do membro amputado. Desta forma, o paciente vê a perna no reflexo do espelho e move-a, criando a perceção de que está a mover os dois membros.
Durante os exercícios, os psicólogos da MSF acompanham e prestam apoio às pessoas, discutindo a perceção dos movimentos e ouvindo o paciente a partilhar medos e preocupações sobre o novo corpo. O “espelhamento” contribui para a aceitação da prótese no futuro, com os psicólogos a desempenharem um papel essencial. Também é um método usado para gerir dores fantasma no membro ausente, em que o paciente pode lidar com a dor imaginária tocando ou movendo o membro existente, enquanto olha para o espelho.
O processo de tratamento e reabilitação pode ser bastante moroso, e alguns pacientes com lesões graves permanecem longos meses no hospital. Quando são eventualmente capazes de voltar para casa, o processo de adaptação à nova vida pode ser difícil.
Cavalos, pesca e arte para ajudar a recuperar a felicidade
As atividades psicossociais e uma mudança de ambiente são essenciais para a saúde mental dos pacientes. Os psicólogos e assistentes sociais da MSF organizam viagens recreativas até locais como o jardim zoológico e o cinema, ou levam pacientes a pescar. Além disso, há visitas regulares a unidades protéticas e ortopédicas, onde os médicos explicam os tipos de próteses disponíveis e como escolhê-las corretamente.
“É importante ajudar os pacientes a deixar o hospital, pois isso melhora substancialmente a moral deles e permite que se reconectem com a sociedade. Durante estas atividades, divertem-se, tentam algo novo e entendem que as lesões e traumas que têm não são um obstáculo para vida social plena. Também são apreendidas estratégias saudáveis para lidar com o stress", sublinha a psicóloga da MSF, Larisa Grigorenko.
"É bom estar longe do ambiente do hospital. Uma viagem ao jardim zoológico até me permitiu recordar algumas memórias de infância. Vi animais que tinha visto pela última vez quando era criança", partilha Oleksii, paciente do hospital.
Em alternativa, a MSF leva as atividades até aos pacientes cuja condição de saúde não permite essas viagens. São organizadas semanalmente atividades artísticas e eventos especiais, como churrascos e visitas de treinadores de cavalos e cães nos jardins do hospital. Essas atividades não só permitem que os pacientes tenham algum descanso, como também aumentam a confiança que têm em mostrar que ainda são capazes de fazer muito do que faziam antes de serem feridos.
"Infelizmente, devido às lesões, alguns pacientes perderam a visão e desenvolveram zumbidos. São fisicamente incapazes de ler, resolver quebra-cabeças ou fazer qualquer coisa assim. É por isso que a arte se tornou a melhor opção neste caso", explica Larisa. "Não é arte-terapia no sentido clássico, não interpretamos as obras, não mergulhamos no núcleo do trauma. Pelo contrário, é uma terapia que ajuda a estabilizar, mergulhar no processo artístico e aumentar a auto-estima."
Os benefícios da arte-terapia não podem ser subestimados. Quando funciona, os pacientes recuperam a fé nas habilidades que têm e nutrem um desejo de continuar a criar. "As minhas dores fantasma diminuíram significativamente. Não presto atenção a elas, especialmente quando estou a pintar. Também me consegui adaptar melhor ao meu corpo e estou-me a habituar ao facto de que não tenho um braço e uma perna. Isto permite-me passar para a fase seguinte: preparar-me para o facto de que terei de usar uma prótese”, expressa Oleksii.
E a seguir?
Em dezembro de 2023, depois de estabelecer instalações e serviços de reabilitação em Vinnitsia e Kiev, e fornecer durante 18 meses cuidados a pacientes e formações a profissionais, a MSF entregou a gestão dessas atividades à Mehad, uma ONG francesa que gere projetos de saúde e desenvolvimento. Todos os especialistas em saúde ucranianos - incluindo fisioterapeutas e psicólogos - foram mantidos pela Mehad, e a MSF doou equipamento médico e de escritório, bem como dois veículos para apoiar a continuação das atividades de reabilitação.
Com a guerra em curso na Ucrânia, os ferimentos causados por minas terrestres, explosões e bombardeamentos continuam a ser constantes, e a necessidade de serviços de reabilitação permanece alta. A MSF continua a apoiar o Ministério da Saúde, através do fornecimento de formações em fisioterapia e apoio técnico a profissionais em hospitais na região de Jitomir e do lançamento de um novo projeto de reabilitação com pacientes feridos de guerra em Tcherkasi.
Como Tcherkasi fica no centro da Ucrânia e está muito perto da zona de combate ativo, muitos dos pacientes chegam quase imediatamente após sofrerem os ferimentos. A MSF inicia prontamente o processo de reabilitação depois de realizada a cirurgia ou a amputação dos membros, que é crucial para a recuperação. Se a fisioterapia não for iniciada atempadamente, as articulações podem ficar imobilizadas, o que pode impossibilitar o uso de próteses no futuro.
"Pacientes com traumas de guerra recebem um tratamento atempado e abrangente da nossa equipa multidisciplinar de fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros", explica a coordenadora do projeto da MSF em Vinnitsia e Jitomir, Katerina Serbina. "Trabalhamos em estreita parceria com o Ministério da Saúde, que é muito dinâmico, mas também enfrenta um enorme desafio por causa da guerra. A nossa equipa apoia a equipa do Ministério da Saúde, reforçando a sua capacidade, para que a presença da MSF tenha um valor agregado para todo o sistema de cuidados de reabilitação no país."