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De comboio rumo a um futuro incerto: relato dos que tentam escapar da morte na Ucrânia

O comboio medicalizado da Médicos Sem Fronteiras a operar na Ucrânia transportou já mais de 2.000 pacientes desde regiões no Leste do país para hospitais mais a Ocidente.

Andrii Ovod/ MSF

SIC Notícias

Médicos Sem Fronteiras

Chinelos de borracha e as memórias de uma vida antes tranquila são frequentemente as únicas coisas que levam os pacientes a bordo do comboio medicalizado que a Médicos Sem Fronteiras (MSF) opera na Ucrânia. Deixaram as casas rumo a um futuro incerto, tentando escapar da morte e de ferimentos.

Oleksandr é de Vugledar, no oblast (região) de Donetsk, no Leste do país, e é um dos mais de dois mil pacientes que foram já transportados pelo comboio de encaminhamentos médicos da MSF. O comboio começou a funcionar em março passado, em colaboração com os Caminhos de Ferro Ucranianos, com o propósito de transferir pacientes de hospitais sobrecarregados no Leste da Ucrânia para outras estruturas hospitalares com maior capacidade e que estão mais distantes das linhas da frente dos combates.

Oleksandr foi encaminhado pelo comboio médico da MSF para receber tratamento adicional para um ferimento numa perna. Abrigara-se dos bombardeamentos com a família numa cave, e, ao fim de 20 minutos, pareceu-lhe que as coisas tinham acalmado, pelo que decidiu sair para tomar ar. “Dois ou três minutos depois ouvi uma explosão – diferente das outras antes. Acho que era um drone. Não tive tempo para fugir e fiquei ferido na perna”, recorda.

Durante a deslocação no comboio, as equipas médicas da MSF a bordo colocam um dispositivo na perna ferida de Oleksandr que drena o excesso de fluido.

O percurso desde vilas no oblast de Donetsk até Lviv, na ponta ocidental da Ucrânia, por exemplo, demora mais de um dia. Para providenciar apoio e cuidados médicos aos pacientes, a MSF equipou as carruagens do comboio com monitores cardíacos, ventiladores, máquinas de ecografia e outros equipamentos médicos. O comboio é composto por oito carruagens, entre as quais estão áreas de camas para os pacientes, incluindo para quem requer cuidados intensivos, e para seus familiares.

Sergui e Katerina, um casal oriundo de Sloviansk, no oblast de Donetsk, estão a ser transferidos para um hospital em Lutsk, no Noroeste da Ucrânia. Katerina tem cirrose hepática e não consegue obter apoio clínico na zona onde vive – todos os médicos especialistas partiram da cidade por causa da guerra. “Quase todas as farmácias na cidade também estão fechadas. E as que ainda estão a funcionar têm uma quantidade limitada de medicamentos”, descreve Sergui.

Nesta deslocação do comboio da MSF, feita a 5 e 6 de novembro, as pessoas que estão a ser transportadas são na maioria idosos, alguns com doenças crónicas, mas as equipas da organização médico-humanitária encaminham com frequência também crianças.

Vladislav, de 14 anos, é de Liman, no oblast de Donetsk, e foi atingido por estilhaços no abdómen. Está a ser transferido para Lviv, com a mãe, Julia, para prosseguir o tratamento. Julia conta que o jovem foi ferido na explosão de um morteiro que atingiu a casa quando ele estava a jogar jogos de vídeo.

“O Vladislav estava consciente e a gritar de dor quando foi levado para o hospital. Queixava-se das dores no abdómen e dizia que não conseguia mover as pernas. Disse que estava com medo de não sobreviver”, explica Julia.

Entre os finais de março e finais de outubro, um terço dos pacientes transportados pelo comboio medicalizado da MSF são pessoas idosas ou pessoas com limitações de mobilidade; um outro terço são pacientes com doenças ou problemas médicos crónicos; um terço ainda são pacientes com ferimentos que carecem de tratamento adicional de traumatologia.

Entre estas pessoas foi transferida Galina, que vive e trabalha numa padaria na cidade de Marganets, no oblast de Dnipropetrovsk. “Algum tipo de engenho explodiu junto à loja durante o meu turno. Foi uma explosão súbita e não me lembro de mais nada. Havia estilhaços por todo o lado. O meu braço direito foi ferido na explosão”, lembra Galina. Após ser submetida a uma cirurgia, Galina tem planos de regressar a casa. Diz que a família está à espera que ela volte.

Margarita, oriunda do oblast de Donetsk, acalenta exatamente o mesmo desejo. Em setembro passado teve de partir de casa por ter gangrena – um dedo de um dos pés estava a ficar preto – e precisava igualmente de cirurgia. “O médico disse-me para me mover menos. Mas como é que posso mover-me menos? Tenho de ir arranjar água, porque já não há água canalizada; tenho de ir comprar comida”, avança.

Para a deslocação no comboio da MSF, Margarita levou com ela apenas o mais necessário: uns roupões de banho, sabonete e medicamentos. “Nem sequer trouxe sapatos. Estou a usar chinelos de borracha. Só espero poder voltar para casa”, expressa.

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