Pelos finais de fevereiro, assim que a guerra eclodiu na Ucrânia, Dmitri Zakharov, dono de uma churrasqueira e de uma lavagem de carros em Kharkiv, começou a transformar os seus negócios no Sul da cidade num centro de ajuda humanitária.
“Depois de ter ouvido as primeiras explosões, fui comprar comida para a minha família e comecei a pensar no que podia fazer para ajudar”, recorda. “Vi uma fila enorme de pessoas à espera para comprarem água para beber, mas não havia suficiente”, explica ainda. Dmitri Zakharov soube logo o que fazer: a churrasqueira tem o seu próprio abastecimento de água potável, pelo que começou a oferecê-la gratuitamente. E quando uma fábrica processadora de carnes foi danificada nos combates e teve de encerrar, Dmitri Zakharov foi recolher a carne e distribuiu-a na comunidade enquanto ainda era comestível.
Em pouco tempo, os esforços humanitários de Dmitri Zakharov tomaram conta dos seus negócios. As salas de refeição do restaurante-churrasqueira, revestidas a madeira nodosa, em estilo rural, foram esvaziadas para dar espaço a atendimento médico gratuito para quem dele precisasse. E na porta ao lado, sob o grande letreiro luminoso da lavagem de carros, voluntários movem-se de um lado para o outro, com cuidado para evitar o sistema de drenagem de água, de forma a servirem almoços nutritivos e gratuitos, todos os dias, às pessoas da comunidade.
Quando as equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) começaram a avaliar quais eram as necessidades existentes e de que forma a organização médico-humanitária podia ajudar, houve algo notável que se destacou – o número de redes ucranianas de voluntários, de organizações sem fins lucrativos e de grupos da sociedade civil que muito rapidamente se tinham mobilizado. Estas iniciativas são geridas por pessoas que foram e continuam a ser afetadas pela guerra e que estão a fazer chegar ajuda humanitária a quem precisa.
Por isso, “quisemos ajudar a fortalecer aquilo que elas já tinham construído”, frisa a coordenadora de projeto da MSF em Kharkiv, Barbara Hessel. Até à data, foram estes grupos locais que providenciaram a grande maioria da ajuda humanitária na Ucrânia.
Dmitri Zakharov continua a acompanhar as necessidades que identifica na sua comunidade. Por estes dias, quando a MSF determina que o bairro tem segurança suficiente, um profissional médico e um de psicologia das equipas da organização médico-humanitária disponibilizam os seus serviços junto à churrasqueira, enquanto numa sala ao lado voluntários de enfermagem administram infusões a pacientes com cancro, e outros voluntários ainda cozinham refeições para cerca de 1.200 pessoas todos os dias, na cozinha ao fundo do restaurante.
Os projetos desenvolvidos pela MSF em todo o país estão a funcionar com a participação de dezenas de grupos locais: desde voluntários que entregam milhares de caixas de alimentos em aldeias remotas, às autoridades das ferrovias ucranianas que disponibilizam comboios para os serviços de transferências médicas da MSF, a motoristas voluntários que levam medicamentos até às portas de casa dos pacientes. “Estas são as pessoas certas para levar ajuda às suas comunidades. Elas têm estado aqui e continuarão a estar aqui depois de nós termos partido, e precisam mesmo de apoio”, explica Barbara Hessel.
Chegar até quem está longe da ajuda
Iana Biletskaia começou a organizar com alguns amigos ações humanitárias que chegassem a locais mais remotos assim que a guerra começou. O objetivo era alcançar as pessoas que estavam totalmente afastadas de outras fontes de ajuda: habitantes da miríade de aldeias localizadas longe da cidade de Kharkiv.
Um armazém enorme está cheio com doações vindas de organizações, grandes e pequenas – caixas castanhas meio amachucadas contendo comida enlatada que foram enviadas de uma pequena escola na Inglaterra estão arrumadas ao lado de uma pilha enorme de caixas brancas e bem identificadas de uma das maiores organizações não-governamentais internacionais.
O grupo organizado por Iana Biletskaia e seus amigos carrega estas doações diretamente nos comboios que seguem rumo às zonas rurais onde cerca de cem grupos comunitários diferentes as vão buscar e distribuir pelos habitantes, muitos dos quais são pessoas idosas.
“Quando começámos éramos umas 50 pessoas e agora somos uns 20”, conta Iana Biletskaia. “Mas também somos muito mais eficientes agora do que antes. Passámos de trabalhar 24 horas todos os dias para bem menos horas agora, mas organizando muito melhor o nosso tempo. O nosso problema é o combustível, é muito complicado para os nossos voluntários arranjarem o combustível necessário para fazer as distribuições”, sublinha.
A MSF tem providenciado milhares de caixas com alimentos – cada caixa tem produtos não perecíveis que alimentam uma família de três a quatro pessoas durante uma semana – e também kits de higiene com papel higiénico, sabonetes, pasta dentrífica e outros artigos essenciais, a pessoas por toda a cidade e região de Kharkiv, através de parcerias com redes de voluntários como a que é organizada por Iana Biletskaia.
Estabelecer este tipo de parcerias com grupos e voluntários permite à MSF chegar a muito mais pessoas do que o faria de outra forma. “Juntos conseguimos fazer tanto mais”, sustenta a coordenadora de projeto da MSF em Kharkiv, salientando que estes grupos locais “têm a capacidade de entregar 3.000 refeições por dia e as suas redes estão muito bem organizadas”. O centro de voluntários está a trabalhar com mais de 50 grupos de voluntários em 21 distritos da região de Kharkiv. Os grupos estão em contacto uns com os outros e podem reportar à MSF ou a outras ONG onde existem necessidades adicionais.
Encontrar um propósito a ajudar
Tal como muitos dos voluntários com quem trabalha e dos colegas ucranianos nas equipas da MSF, Daria Samoilova, que assegura a ligação entre a organização médico-humanitária e os grupos de voluntários em Kharkiv, estava num rumo bem diferente antes de a guerra lhe virar a vida do avesso. “Era advogada. Tinha uma vida boa. Já tinha viajado para 38 países”, lembra. E depois a guerra começou: “Eu sabia que estava tudo a mudar e que era possível que a minha vida fosse destruída, que eu morresse.”
Ao sétimo dia da guerra, um grande edifício perto da casa da mãe de Daria Samoilova foi atingido por uma explosão – fizeram as malas e partiram para outra parte do país. Mas ela tinha perdido o gosto em viajar e só queria regressar a casa. “Tinha de começar uma nova vida”, diz.
Daria Samoilova começou a trabalhar com a MSF inicialmente como tradutora e agora como ligação aos grupos de voluntários e supervisionando as parcerias estabelecidas entre os grupos locais e a organização médico-humanitária. Ao fim de poucos dias nesta nova vida, Daria diz que teve “uma consciencialização”:
Senti-me feliz. Estava a fazer algo bom e gentil, e todas as outras pessoas com quem estava a trabalhar sentiam este mesmo propósito – o de ajudar.
Sem abrandar
Mesmo com a guerra a continuar, causando ainda mais mortes, mais deslocações e impactos psicológicos, assim como dificuldades económicas, voluntários e organizações locais não mostram quaisquer sinais de abrandarem. Dmitri Zakharov, Iana Biletskaia e outras pessoas dizem que querem fazer mais, não menos.
A coordenadora de projeto da MSF em Kharkiv considera que, por muito inspirador que isto seja, também levanta algumas questões:
Muitas pessoas já não têm fontes de rendimento – quando é que se vai chegar ao ponto crítico? Durante quão mais tempo pode isto continuar? Muitas pessoas trabalham os dias inteiros e todos os dias, e aquilo que veem e aquilo por que estão a passar é emocionalmente desgastante.
Para ajudar a mitigar isto, em Kharkiv, as equipas da MSF começaram a prestar apoio a voluntários e líderes comunitários, ajudando-os a desenvolverem estratégias de auto-cuidados e de gestão do stress. “Estas pessoas merecem reconhecimento pelo trabalho que estão a fazer”, frisa o responsável da MSF pelas atividades de saúde mental, Camilo Garcia.
E mais que qualquer outra coisa, queremos providenciar-lhes um apoio contínuo para que possam prosseguir a ajudar as pessoas nas suas comunidades que precisam de ajuda.