Saúde Mental

Uma linha para ouvir quem sente a vida por um fio: "Às vezes choramos juntos"

Francisco Paulino esteve do outro lado da linha na SOS Voz Amiga durante 15 anos, antes de se tornar seu presidente. “Por cada chamada que atendemos, ficam tantas perdidas”, lamenta. Ana é agora voluntária e tem a certeza de que “é preciso estar bem para ajudar os outros”. No final deste artigo encontra contactos para várias linhas de apoio.
Carol Yepes

Cláudia Machado

Há quem procure respostas e quem só queira partilhar “o lado positivo”. Todos escolhem ceder o seu tempo e toda a sua atenção para, durante algumas horas por mês, ouvirem quem sente a vida por um fio. Na SOS Voz Amiga, entre as 15:30 e a 00:30, há alguém que escuta, “sem julgamentos, sem dar conselhos”. Há 50 voluntários do outro lado da linha e outros 14 a iniciarem agora a sua formação.

Francisco Paulino tem 70 anos e desde 1997 está ligado há associação que, na véspera do Dia Mundial da Saúde Mental, celebra 45 anos de existência. Durante 15 anos, atendeu as chamadas de quem precisava de ser ouvido. Agora, está à frente dos destinos da organização.

“Entrei como voluntário porque precisava de respostas depois de uma pessoa próxima ter tentado o suicídio. Ficamos sempre a pensar no porquê, porque é que não pediu ajuda”, recorda o presidente da SOS Voz Amiga.

A pergunta que se seguia só podia ser uma: encontrou essas respostas? “Nem todas, mas fui ficando”, responde rapidamente e com um tom de voz que deixa perceber um sorriso.

“É uma experiência muito gratificante porque temos a sensação de que contribuímos para salvar uma vida. Atendi milhares de pessoas, mas há chamadas muito pesadas e que deixam marcas”, salienta.

As regras a seguir e a necessidade de fazer uma pausa

É precisamente pelo peso que cada chamada pode fazer cair sob os ombros dos voluntários que estes têm de seguir várias regras:

  • Têm de ter mais de 23 anos;
  • Não dão conselhos;
  • Respeitam o duplo anonimato - nem o voluntário, nem quem liga pode ser identificado;
  • Não há espaço para preconceitos, nem pressões.

Além disso, é recomendado que evitem ultrapassar três a quatro turnos por mês e que marquem presença em reuniões semanais com psicólogos, onde se procura “amenizar a intranquilidade que possam sentir depois das chamadas”.

É também pedido que cada um faça uma auto-análise e avance para uma pausa, se a sentir necessária. Francisco já a fez.

“Há um tipo de chamada que nenhum voluntário quer receber, em que a pessoa diz que não precisa da nossa ajuda, apenas quer companhia porque aquele é o fim para ela. Numa chamada, apenas ouvi o som do disparo e, depois, o silêncio. Marcou-me e tive de interromper o voluntariado durante algum tempo”, partilha.

“Às vezes choramos juntos, outras conseguimos dar a volta para um lado positivo”

Ana, nome fictício precisamente para garantir o duplo anonimato, também já fez uma pausa ao longo dos seus três anos na SOS Voz Amiga, “mas apenas por razões profissionais”.

Não sentiu ainda que dela precisava, mas reconhece que “este não é um voluntariado para qualquer um”.

“Temos de estar bem para ajudar os outros. Sou uma pessoa muito positiva e tento sempre levar a pessoa a encontrar algo na sua vida a que se possa agarrar, mas isso não quer dizer que não me emocione. Às vezes choramos juntos, outras conseguimos dar a volta à conversa para um lado positivo”, conta a bancária, de 51 anos.

Com a certeza de que “este País não está preparado para dar respostas aos problemas de saúde mental”, Ana sente que pode desta forma contribuir e, como recompensa, ouvir do outro lado alguém dizer “que só precisava de desabafar e já se sente melhor”.

Ainda assim, teve de aprender a lidar com o sentimento de “impotência por não poder intervir nos casos e não saber como terminaram”, além de estar sempre preparada para o desconhecido.

“Recebi uma chamada, não durou mais do que dois minutos, em que alguém me diz que precisa de ajuda porque um familiar está a tentar suicidar-se e colocou uma mensagem de despedida nas redes sociais. Tudo o que pude fazer foi explicar que não podemos intervir e deveria contactar a polícia. Mas depois fiquei a pensar ‘e se está ao lado da pessoa e lhe passa o telemóvel?’. Não sei responder como se lida com um cenário desses”, partilha a voluntária.

Francisco desenvolveu ao longo dos anos um “truque” para perceber quando precisava, também ele, de ajuda.

“Vivo na Margem Sul e, na altura em que era voluntário, se chegasse a meio da ponte 25 de Abril no regresso a casa e a chamada difícil ainda estivesse no pensamento, no dia seguinte procurava o apoio dos nossos psicólogos”, revela.

“Por cada chamada que atendemos, ficam tantas perdidas”

Nos últimos seis anos, foram atendidas mais de 43 mil chamadas pelos voluntários da SOS Voz Amiga, mas muitas mais ficam para trás.

“Por cada chamada que atendemos, ficam tantas perdidas. O nosso sistema permite-nos perceber isso, quando temos uma chamada em curso vemos quantas vamos perdendo, mas não temos voluntários para atender todos esses pedidos”, lamenta Francisco Paulino.

Sublinhando que “a saúde mental tem sido o parente pobre”, o responsável avança que mais de metade das chamadas recebidas (60%) são sobre ansiedade, depressão e outras doenças do foro mental que, tendo em falta o devido acompanhamento, podem escalar para situações mais graves, como os pensamentos suicidas, que representam 7% do mesmo total.

Ainda são mais mulheres que ligam a pedir ajuda, “porque ainda existe muito a velha questão cultural do homem que não chora, que não mostra que sofre”.

A experiência de Ana revelou-lhe uma realidade avassaladora, já que chegou à linha com a ideia de que “seriam mais chamadas de idosos, sobre solidão, que as há, mas a realidade é muito diferente e impressionante”.

“Ouvimos pessoas de todos os extratos sociais, de todas as idades, de todos os pontos do País. Histórias muito difíceis, como jovens que se automutilam, que são dolorosas de ouvir, mas temos de o fazer porque aquela pessoa possivelmente não tem mais ninguém com quem falar”, refere a voluntária, que destaca ainda “casos de violência que marcam muito, como alguém que nos liga depois de agredir alguém para nos dizer que não consegue ser de outra maneira”.

E também se escuta as queixas de quem “não tem dinheiro” para ser devidamente acompanhado. “Uns estão à espera de consultas meses e meses a fio, outros simplesmente não têm como as pagar no privado”, critica Ana.

Com a certeza de que “nunca se está verdadeiramente preparado”, Francisco mantém a convicção de que este tipo de projeto é cada vez mais necessário. “Temos de estar ali como pessoas, para ouvir o outro, naquilo a que chamamos uma escuta ativa, respeitar quem nos contacta e nunca, mas mesmo nunca, dar conselhos”, remata.

Precisa de falar com alguém? As linhas onde se escuta quem precisa:

SOS Voz Amiga

213 544 545 - 912 802 669 - 963 524 660

Diariamente das 15:30 às 00:30

Voz de Apoio

225 506 070

Diariamente das 21:00 às 24:00

Telefone da Amizade

228 323 535

Diariamente das 16:00 às 23:00

SOS Estudante

915 246 060 - 969 554 545 - 239 484 020

Diariamente das 20:00 à 01:00 (exceto férias escolares)

Linha de Atendimento Psicológico SNS 24

808 24 24 24 - escolher a opção 4

Diariamente, 24 horas

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