A doença mental é comum (atinge cerca de 20% dos portugueses). A doença mental não é uma doença do outro nem é falta de vontade. A doença mental impede a pessoa de realizar o seu potencial, estudar ou trabalhar de forma produtiva, relacionar-se com amigos e família, fazer escolhas saudáveis. A doença mental tem diagnóstico. A doença mental tem tratamento. O tratamento é eficaz. Não podemos falar de Saúde Mental em Portugal sem vermos e revermos estas ideias.
Numa era onde cada vez mais falamos de inovação e progresso, Portugal tem, paradoxalmente, ao longo dos anos relegado a Saúde Mental para segundo plano. A filha pobre da Medicina. As consequências dessa desatenção são palpáveis por todos nós. Ainda agora, comparando o investimento em Saúde Mental com outras áreas da Medicina, o contraste é desanimador. Com apenas 2,5% do orçamento da Saúde destinado à Saúde Mental, fica evidente que estamos aquém das recomendações internacionais.
E, é neste contexto, que este ano surge a nova Lei de Saúde Mental. Uma lei que vem sublinhar a necessidade de promover a Saúde Mental como um direito fundamental e um objetivo de saúde pública. Uma lei que pretende garantir o acesso a cuidados de Saúde Mental de qualidade. Uma lei que exige uma mudança de foco - da doença para a pessoa – e que defende os cuidados de proximidade dando ênfase ao tratamento comunitário.
É importante notar que a nova Lei de Saúde Mental é uma lei recente, é uma lei complexa, com muitas implicações, que ainda está a ser implementada. É natural que haja críticas e opiniões diferentes sobre ela.
Fala-se que será necessário aumentar custos para que se possam cumprir as suas prerrogativas. Será? Provavelmente. Mas é importante lembrar duas coisas. Primeiro, a criação de novos serviços de Saúde Mental pode levar a um aumento de custos a curto prazo, mas a uma redução dos custos a longo prazo. Segundo, a melhor gestão de recursos (financeiros e humanos) e coordenação da rede é tão importante como o aumento dos mesmos recursos – a eficiência também traz um ganho. Não existem soluções rápidas ou fáceis. Mas abre-se um caminho.
Ouve-se também – “é o fim dos internamentos contra-vontade, é o fim dos hospitais psiquiátricos, ufa”. A nova lei não prevê o fim dos tratamentos contra-vontade. A nova lei não prevê o fim dos hospitais psiquiátricos ou dos serviços de internamento nos hospitais gerais. A nova lei prevê, sim, a redução da utilização dos hospitais psiquiátricos e privilegia a prestação de cuidados em meio comunitário.
A ideia de reduzir os internamentos, favorecendo o meio comunitário, é meritória mas os hospitais psiquiátricos e os serviços de internamento de psiquiatria em hospitais gerais continuarão a ser um recurso importante para as pessoas com problemas de Saúde Mental graves, que não podem ser tratados em meio comunitário.
Prevenir a doença mental e tratar em tempo útil a doença mental grave deve ser uma prioridade mas isso não vai acabar com a necessidade de internamento de alguns doentes. As doenças mentais graves têm flutuações e não vamos conseguir controlar todas.
E os hospitais psiquiátricos? Não têm que ser um bicho de sete cabeças. A especialização de cuidados, o seu tamanho com possibilidade de mais áreas de reabilitação (Terapia Ocupacional, Hospital de Dia, Área de dia, Cursos profissionais), maior capacidade de adaptação em caso de necessidade (porque são maiores e, portanto, mais flexíveis) e a maior autonomia financeira e executiva são alguns dos pontos em que ganham. Ganham nuns pontos, os hospitais gerais ganham noutros: mais e melhores cuidados médicos, maior articulação com outras especialidades (benéfico para ambos), mais acesso a meios complementares de diagnóstico, melhores condições por maior investimento nos últimos anos e maior possibilidade de proximidade nos cuidados.
Existe espaço para ambos. Hospitais gerais e hospitais psiquiátricos. Serviços comunitários e serviços hospitalares. A questão não é escolher entre um e outro mas sim entender como eles podem coexistir e complementar-se de forma eficaz.
Entender a saúde mental como uma opção é minimizar o impacto que ela tem na vida das pessoas e na sociedade. Não há Saúde sem Saúde Mental. Nesta dança entre o tratamento comunitário e o hospitalar, entre a prevenção e o tratamento, entre a liberdade da pessoa e o seu bem-estar, não podemos perder de vista a essência: cuidar da pessoa na sua totalidade.
A Saúde Mental não pode ser um “luxo” ou uma “opção”. Reconhecer isto tem que ser o primeiro passo.