Ontem Já Era Tarde

"Há jogadores que fazem três coisinhas e já valem milhões. O futebol está muito inflacionado"

Com um percurso que cruza continentes e décadas, Luís Norton de Matos é uma das figuras mais versáteis do futebol português. Jogador, treinador e dirigente, iniciou carreira nos anos 70 e passou por clubes como Benfica e Standard Liège, onde viveu momentos marcantes tanto a nível desportivo como pessoal.

Luís Aguilar

Como treinador, o trajeto é igualmente internacional: Senegal, Guiné-Bissau, Índia, França e Bélgica são alguns dos países por onde passou, para além de diversos emblemas nacionais. Atualmente, aos 71 anos, mantém-se ativo na observação de jovens talentos, colaborando com clubes na identificação de jogadores em idade de formação.

Apesar da vasta experiência e de uma rede de contactos consolidada, Norton de Matos reconhece as dificuldades impostas pelas dinâmicas atuais do mercado:

“Vemos jogadores que fazem três coisinhas e no dia seguinte já valem milhões. É uma indústria muito inflacionada”, afirma.

Como exemplo da gestão mais racional, aponta o trabalho de Luís Campos no Paris Saint-Germain, elogiando a capacidade de identificar jogadores com elevado rendimento desportivo: “Olhamos para as transferências de João Neves por 60 milhões ou Vitinha por 40 milhões e percebemos que, por esses valores, quase que foram de borla.”

“Continuam a existir jogadores bons e baratos, mas os clubes não querem porque não dá para fazer negócio”

Luís Norton de Matos reconhece o papel que empresários e intermediários têm no futebol moderno. Para o antigo jogador e treinador, é essencial que existam profissionais a representar os atletas e a fazer a ponte com os clubes. No entanto, sublinha que essa intermediação nem sempre é necessária nos casos mais evidentes.

“Consigo perceber o papel dos empresários e dos intermediários. Tem de haver gente a representar os jogadores e a informar os clubes sobre o valor deste ou daquele jogador. Mas nenhum clube precisa de empresário para saber se o Ronaldo é bom ou se o Gyökeres é bom. Isso está lá.”

O desafio, diz, está em encontrar talento antes que o mercado o descubra. "O que é difícil é detetar um jogador que não está em nenhum radar e passados uns anos, com trabalho e um determinado enquadramento, vai valer muito dinheiro. Valia zero e passa a valer 10 milhões. Isso, sim, é uma valorização extraordinária.”

Com décadas de experiência na observação de jogadores em contextos diversos, Norton de Matos aponta, no entanto, dificuldades estruturais que vão para além da análise técnica. Em muitos casos, são os próprios clubes que criam barreiras ao talento.

Recorda o caso de um jovem jogador chileno, com potencial evidente, que acabou por chegar à seleção do seu país pouco depois de ter sido identificado. Ainda assim, viu uma oportunidade falhar devido à lógica de negócio.

“Os representantes de um clube chegaram a dizer que o jogador era ótimo, mas não podiam levá-lo. Porquê? Porque o adjunto que tinha ido ver o jogador informou o preço. Custava 600 mil dólares. E esse era o problema. Diziam que o jogador tinha de custar 2 milhões. Ou seja, tem de haver negócio para todos.”

Para Norton de Matos, este é um dos principais entraves à valorização real de jogadores: “Por vezes, não interessa a qualidade, o potencial ou o rendimento, mas sim o negócio. Os clubes, muitas vezes, não querem o que é de borla porque não há negócio.”

"Só soube do 25 de Abril às 16h00. Na véspera, tinha estado a jogar às cartas e deitei-me tarde”

Luís Norton de Matos tinha pouco mais de 20 anos e jogava na Académica quando aconteceu o 25 de Abril de 1974. Na manhã da Revolução, ainda não sabia o que se estava a passar no país.

Recorda que, a véspera tinha sido passada em tertúlia com colegas da equipa, num campeonato informal de “king”, o tradicional jogo de cartas.

“Ficámos acordados até tarde porque no outro dia o treino era só à tarde. De manhã não tínhamos nada para fazer e deitávamo-nos um bocadinho mais tarde, estilo duas da manhã, a jogar às cartas.”

Ao início da tarde, ao atravessar a ponte de Coimbra em direção ao campo universitário, viu aviões militares no céu e achou estranho. Só ao chegar ao treino é que se apercebeu da dimensão do momento: “Quando cheguei ao campo toda a gente estava a falar da Revolução. E eu: ‘Mas qual revolução?’".

A notícia do golpe militar chegou-lhe pela boca dos colegas. A partir daí, começou um interesse profundo por informação e política.

“Todos os jornais esgotavam. Havia “A Capital” e o “Diário Popular”. Pediam para reservarem porque queria ler tudo. Sempre fui um ávido leitor e queria saber mais. Foi aí que começou uma tomada de consciência política que muitos não tinham em Portugal.”

Poucos anos depois, em 1978, rumou à Bélgica para representar o Standard Liège. O impacto foi imediato, sobretudo pela diferença cultural.

“Costumo dizer que passei de um mundo a preto e branco para um a cores. Em Portugal, a televisão começava às sete da tarde e acabava à meia-noite com o hino nacional. Lá, chego a casa e tenho 16 canais a cores. Era música, bandas internacionais… parecia um parolo, passava o dia a ver televisão.”

A mudança marcou-o também no futebol. O contraste com o que existia em Portugal na altura era notório.

Eles eram mais fortes do que nós nessa altura. Hoje nós somos melhores. E senti muita diferença no treinos e em situações que aqui não se praticavam como a periodização tática.”

Nessa equipa, lembra Norton de Matos, foi colega de Eric Gerets, uma das grandes figuras do futebol belga, e de um jovem guarda-redes que começava a aparecer e que acabaria por marcar o futebol mundial: “Fui colega do Michel Preud’homme. Ele era muito novo e já era muito bom.”

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