Coronavírus

Morcegos podem provocar uma futura pandemia? Brasil é apontado como um "potencial berço"

A intervenção humana nas florestas e, consequentemente, o contacto com morcegos cria um "autêntico caldeirão cultural". Mas o que é que, na prática, isto pode significar? "Ninguém está seguro", alerta um cientista da Índia.

Rita Rogado

Ana Isabel Pinto

Os morcegos podem vir a estar na origem de uma futura pandemia, apontam especialistas que, preocupados com espécies desconhecidas, alertam os líderes mundiais.

Há cada vez mais intervenção humana em florestas, o que leva ao surgimento de mutações e a uma rápida propagação de possíveis vírus. A agência Reuters publicou uma investigação, "The Bat Lands", exatamente sobre morcegos e como podem provocar uma pandemia. O Brasil é apontado como um "potencial berço".

Voam aos milhares e formam autênticas "nuvens negras" por cima da floresta, enquanto o último raio de luz desaparece. Por baixo, são campos e caminhos onde, todos os dias, passam agricultores. À volta, há cada vez mais urbanizações e, consequentemente, pessoas, que acabam por estar expostas a resíduos de morcegos, como urina, fezes, sangue e saliva, potencialmente portadores de vírus.
No campo, os moradores alimentam habitualmente o gado com restos de morcegos e eles próprios comem a fruta, depois de cortarem as marcas de mordidas.

Há cerca de um ano, Mahama Faatey, um agricultou de 26 anos, morreu com uma doença misteriosa, no Gana, depois de três dias de febre alta, sangramento na boca e no nariz. Testes de laboratório confirmaram que era Marburg, um vírus mortal de um morcego frugívoro africano. A zona onde o agricultor vivia e trabalhava estava entre os locais mais prováveis na terra para o surto, descobriu a Reuters.

Em maio de 2018, Muhammad Sabith acordou com febre, numa vila na Índia. Já hospitalizado, os sintomas do jovem de 26 anos pioraram: vómitos, alucinações e tosse violenta. Os pulmões encheram-se de líquido, os níveis de oxigénio caíram e, dois dias depois, morreu. Mais tarde, duas semanas após a morte, os médicos identificaram a causa: nipah, um vírus de morcegos. Outras 22 pessoas que tinham tido contacto com o jovem ficaram infetadas. Apenas duas sobreviveram.

Uma visita a uma caverna no Brasil, o habitat de morcegos

Thiago Bernardi Vieira, biólogo da Universidade Federal do Pará, no Brasil, está a explorar cavernas através de bolsas de investigação. A missão é recolher informações sobre morcegos na floresta da Amazónia.

Em julho de 2021, visitou uma gigantesca caverna em Planaltina, "lar de milhares de morcegos". Muitas outras existem na Amazónia.

Em 40 minutos, Thiago e os seus alunos identificaram cerca de 200 morcegos, alguns de espécies raras. O que mais preocupa os cientistas são os vírus desconhecidos.

"Não sabemos o que comem, onde moram, que tipo de abrigo preferem", revela o investigador.

O Brasil tem a terceira maior variedade de morcegos do mundo, atrás apenas da Colômbia e da Indonésia, segundo dados da União Internacional para a Conservação da Natureza.

Devido ao tamanho da Amazónia e à intervenção humana, alguns cientistas olham para o Brasil como um potencial "berço" de uma futura pandemia.

A desflorestação na Amazónia brasileira disparou em janeiro de 2022 e bateu um novo recorde, com 430 quilómetros quadrados de vegetação nativa destruídos, um aumento de 419% em relação ao mesmo mês de 2021, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais do Brasil.

Quando os humanos "invadem" o habitat dos morcegos, há uma "espécie de caldeirão cultural" e "mais potencial para esses vírus serem problemáticos", explica Rory Gibb, biólogo da University College London.

Disseminação do vírus

À medida que as pessoas destroem habitats de morcegos, estão a contribuir para que os vírus transmitidos por morcegos sofram mutações e se multipliquem. Estes animais, que podem voar centenas de quilómetros, transportando vírus, representam uma ameaça para 113 países de todos os continentes, à exceção da Antártida, acrescenta a agência de notícias.

A Reuters fez uma análise, com base em 56 fatores e na área onde os morcegos infetaram pessoas entre 2002 e 2020, que prevê os locais onde a disseminação do vírus se torna mais provável.

A investigação encontrou mais de 9 milhões de quilómetros quadrados no mundo onde as condições, em 2020, eram propícias a um vírus transmitido por um morcego se espalhar, possivelmente provocando uma pandemia.

São essencialmente locais tropicais ricos em morcegos e com uma rápida urbanização. No entanto, estes dados são preocupantes, uma vez que a população está a crescer rapidamente e a densidade populacional está a aumentar nessas áreas.

O risco está a aumentar em locais como a África Ocidental, a China, Laos, a Índia e o Brasil. Algumas das principais zonas de risco são em Kerala, na costa leste da Índia, que tem mais de 40 espécies de morcegos e 35 milhões de pessoas.

No entanto, novas zonas de risco surgem ano após ano, apresenta a Reuters. A destruição de florestas, cavernas e outras áreas "habitadas" por morcegos está a forçar os animais e as pessoas a ficarem mais próximos.

O que é que isto significa? Quanto maior o número de morcegos, maior é a probabilidade de mutações. Quanto maior a proximidade com as pessoas, maior é a possibilidade de os agentes patogénicos alastrarem entre espécies.

Pragya Yadav, cientista do Instituto Nacional de Virologia da Índia, alerta os líderes mundiais para olharem para a "tendência global" de disseminação de vírus "para o bem da humanidade":

"Ninguém está seguro. Não levará tempo para que um surto chegue a qualquer lugar do mundo por causa das viagens e do comércio internacional".

Outras pandemias

As amostras de sangue, urina, saliva e fezes de morcegos recolhidas ajudaram investigadores a identificar o material genético do mesmo tipo de ébola, que causou uma epidemia. O portador era o morcego-de-dedos-longos. Anticorpos de ébola foram também encontrados em amostras de dois morcegos de folha redonda.

Um estudo que analisou nove surtos, entre 2006 e 2014, concluiu que sete ocorreram nos dois anos seguintes a intervenção na floresta.

A reportagem da Reuters "The Bat Lands" aponta ainda para o Marburg, que tem muitas semelhanças com o Ébola e uma taxa de mortalidade de 90%. Depois de se espalhar, o Marburg, assim como o Ébola, pode-se espalhar de pessoa para pessoa através de suor, sangue ou outros fluídos corporais. A doença pode progredir rapidamente de sintomas como febre, dor de cabeça e diarreia para sangramento incontrolável, falência de órgãos e morte.

O vírus de Marburg foi identificado pela primeira vez em 1967, quando 31 pessoas adoeceram na Alemanha e antiga Jugoslávia. Um surto em macacos de laboratório importados do Uganda esteve, na altura, na origem das infeções.

A nipah, o vírus que matou Muhammad Sabith, é um dos agentes patogénicos mais perigosos que circulam na natureza. Não há vacina para prevenir a infeção, nem tratamento. É transmitida por alguns morcegos asiáticos e foi responsável por surtos anteriores na Malásia e no Bangladesh. Pode infetar pessoas através de contacto com o vírus, através de saliva, urina, sangue e gotículas.

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