Cultura

"Somos herança" dos retornados? Histórias do regresso à terra que nunca foi casa

Sabemos da guerra do Ultramar, sabemos do 25 de Abril, mas será que sabemos dos que, entre um momento e o outro, fizeram casa de um sítio que foram forçados a abandonar? A autora Marta Martins Silva conta 21 histórias que a aproximam das suas raízes sobre os que retornaram a um sítio que nunca foi seu.

A família de Horácio e Ida Massa foi uma das muitas obrigadas a fugir de Angola e a deixar tudo para trás.
Bob Olsen/GETTY/Arquivo 1975

Maria Madalena Freire

Regressar onde nunca se esteve, deixar a casa para trás, viajar de bolsos vazios e enfrentar um país que pouco nos quer acolher. Esta realidade só os retornados de África dos anos 70 é que conhecem, mas pouca gente sabe a sua história. Marta Martins Silva dá-nos a conhecer mais um pedaço de pequenos heróis do século XX português.

O livro “Retornados: e a vida nunca mais foi a mesma”, editado pela Contraponto, já está nas bancas e é da autoria de Marta Martins Silva, “filha da liberdade” de 1984 e nascida em Aveiro.

Estas novas 223 páginas são o terceiro “arquivo” da autora que traz uma reconstrução da memória coletiva dos portugueses que retornaram, muitos onde nunca tinham estado.

Para além da ligação forte que tem com os que “regressaram” - pelas vivências dos seus avós -, também tem empatia - que diz que deve pautar o trabalho jornalístico - por um molho de milhares de pessoas que se viram obrigadas a deixar a sua casa e mergulhar num desconhecido pedaço de terra na ponta da Europa.

Marta Martins Silva, jornalista da revista Domingo, retorna, então, ao passado para este ficar presente, em todos os tempos.

Quem são os retornados?

O 25 de Abril deu liberdade a muitos, mas condenou outros. Esses “outros” passaram a designar-se de retornados que, conforme escreve Marta neste livro, foram os portugueses - não só - que vieram forçosamente de África - após o término da guerra e do império colonialista - e “foram obrigados a adaptar-se a um país que não consideravam seu”.

Entre 1974 e 1977 cerca de meio milhão de retornados - 505.078 como especifica a autora - retornaram a Portugal, sendo a maioria homens e menores de 40 anos.

Os que cá estavam, em Portugal, tiveram receio e criaram um estigma de que os retornados vinham, de uma melhor vida, roubar os empregos aos que cá estavam.

“Acho que a sociedade não estava preparada para os receber, e daí o estigma do retornado. Essas pessoas sofreram alguns anos, porque diziam que tinham vivido à conta dos apoios ao refugiado, que estavam em África a explorar os negros, e que vieram para cá roubar os trabalhos”, enumera Marta.

Mas muitos dos retornados nem sabiam o que era Portugal. Segundo conta Marta, através da história do seu sogro - sim, casou também com um descendente de retornados - a vinda para Portugal foi dura, porque não se sentia em casa, não se identificava.

“O meu sogro considera-se angolano, não se considera português. Nasceu em Angola. Ele ficou lá até aos 30 anos, um período em que nos constituímos como pessoa”, conta a autora.

No entanto, o angolano que foi forçado a ser português tinha o privilégio - que muitos dos retornados nascidos em África não tinham - de vir a Portugal de vez em quando, através de licenças chamadas “Graciosas” para os funcionários públicos e familiares.

“Sempre que vinha a Portugal, sentia vontade de regressar a Angola, não se identificava com nada. Depois, quando fica sem terra para morar e é obrigado a fugir, ele não percebe”, explica.

Para muitos, foi um “regressar” a um sítio onde nunca se esteve, muitos dos casos sem nada, dinheiro, pertences, noutros com apenas o suficiente para comer, uma carcaça.

De acordo com Marta, estas pessoas não são retornadas, são refugiadas.

“As culturas (de África e Portugal) eram completamente diferentes. Os miúdos em África eram livres, com o pé descalço no chão, brincavam juntos, onde havia animais selvagens. As raparigas lá não eram amarradas, havia um sentido comunitário grande, com muitos bailes, festas”, detalha.

De repente, são obrigados a vir para “o Portugal escuro”, assombrado pela tinta preta pesada da ditadura.

“Na altura, os retornados trouxeram consigo uma certa leveza, frescura a uma sociedade ainda muito fechada, tacanha, que estava a libertar-se das sombras da ditadura”, descreve.

A entrada de mais de metade de um milhão de pessoas abalou o país, mas agitou ainda mais quem chegou, desamparado, com vida feita a milhares de quilómetros e com a casa às costas. A memória de África era o que lhes restava, o desconhecido era o que enfrentavam.

“Hoje já não se fala disto, por isso, também quis trazer para o debate público a questão do retorno, porque agora há a questão de tentar apagar a História e o que correu mal - isso faz-me confusão”, justifica a jornalista.

Para Marta, é importante olhar para o passado, “para evitar os erros no futuro”. O esquecimento é o maior inimigo da evolução da sociedade e a jornalista “quis destapar esta realidade para se refletir sobre ela, sobre o país que foi e é”.

“Somos todos herança destas pessoas”, refere.

Quem são os portugueses?

Quando questionada sobre a diferença entre um retornado e um emigrante, Marta Martins Silva é clara em distinguir o que eram as vontades de quem foi para África e de quem, agora, vive fora.

“Nós, quando estávamos em Angola e Moçambique, não éramos como os emigrantes, nós estávamos lá para ficar, era um modo de vida diferente. Esta geração de emigrantes não vê as coisas de forma tão definitiva - hoje pode estar em Londres, amanhã em Bruxelas”, explica a jornalista.

Para os retornados, o regresso não constava no dicionário, muito menos nos planos. Aquela era a sua terra.

Apesar do passado e do estigma criado a quem veio contra à sua vontade, a autora considera que, hoje em dia, os portugueses são um povo que “recebe muito bem”.

O que fica (do passado) para o futuro?

Marta Martins Silva está a correr contra o tempo, na sua ótica. A geração dos anos 60 e 70 está em “vias de extinção” e, se as suas memórias não forem delicadamente registadas, nada ficará desse período, sem ser os números que constam nos manuais de História.

“As pessoas perguntam porque lanço os livros seguidos, mas tem a ver com essa urgência de aproveitar quando as pessoas estão cá para contar o que viveram. Quando não estão, ficamos só com os livros de História? Sem o lado humano? O lado humano torna-nos pessoas e os portugueses que queremos ser para o nosso país”, explica.

Para a Marta jornalista, os pequenos grandes heróis merecem um parágrafo ou uma página nos livros de História, para que haja um sentimento generalizado de “empatia”.

“Eu acho que quero mostrar que todos nós somos protagonistas de alguma coisa, em determinado momento, e não é preciso termos alta patente para termos um lugar na História”, diz.

Para a Marta autora, a sua prioridade com estes registos é que os jovens (de agora e do futuro) “olhem para o lado” e ouçam as histórias dos seus familiares que constituem a sua identidade e justificam muito o seu próprio ser e existência.

“Eu sinto muito que os ex-combatentes e retornados nunca encontraram um eco na família para falarem destas coisas dolorosas, está tudo muito reprimido e é importante falar delas com a naturalidade possível”, observa.

A histórias morrem com quem não as contou (ou porque ninguém ouviu)

Os cacos perdidos da História de Portugal dos anos 60 e 70 são as peças do puzzle da jornalista da Domingo, do Correio da Manhã. A primeira peça que iniciou esta reconstrução conta a história das “Madrinhas de Guerra”, livro de 2020 que arquiva a correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar. Na segunda peça, temos as “Cartas de Amor e de Dor”, de 2022, com as recordações íntimas e poderosas do Ultramar.

Desta vez, os pequenos grandes heróis de Marta Martins Silva são os retornados, uma designação que remonta às suas raízes, os seus avós, a quem dedica o livro.

“Este livro parte desta herança pessoal dos meus avós e das histórias que fui ouvindo em criança que se foram colando a mim. Faz parte da minha vida, mesmo não a tendo vivido”, explica a jornalista.

Marta já só tem as memórias dos seus avós, que já cá não estão. Este livro é uma tentativa de os eternizar através das 21 histórias que se aproximam das deles.

“Eu conto a história dos meus avós, aproximo-me deles, mas através de outros. Estas pessoas todas aproximaram-me deles e cumpri uma espécie de missão: homenageá-los”, refere.

Sendo “filha da liberdade”, ao ter nascido 10 anos após o 25 de Abril, em Aveiro, Marta ainda considera que foi educada numa sociedade muito marcada pelos anos de ditadura e da guerra colonial. Daí, este período da história portuguesa ser-lhe tão importante.

“Durante muito tempo, eu pensava qual era a minha missão. E, depois, as respostas foram surgindo e sinto que é dar voz a pequenos protagonistas da História que nunca foram ouvidos, que nunca tiveram oportunidade para contar as suas vidas, ao contrário do Capitão ou Chefe de Estado”, explica a “escritora” - coloco entre aspas dado que Marta refere que “acima de tudo” é jornalista e estes livros são uma “escuta reportagem”.

Há 15 anos que Marta se cruza com todos os testemunhos de ex-combatentes, através de uma rubrica da revista Domingo, que depois a levou a escrever um grande artigo para a Sábado e, consequentemente, a levou a ser convidada para escrever o primeiro livro, “Madrinhas de Guerra”.

Para além disso, a jornalista está já no segundo ano de mestrado em História Moderna e Contemporânea para dar “credibilidade” ao seu trabalho.

Para Marta Martins Silva, todos pertencem na eternidade, até os retornados, os seus pequenos grandes heróis.

Para Álvaro de Campos, “Tudo na vida / Se faz por recordações. / Ama-se por memória.”


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