Urgências e blocos de partos fechados: pouco mudou
O verão de 2023 aparenta trazer algo semelhante ao que foi vivido há um ano: os feriados, pontes e férias tornarão ainda mais difícil o pleno funcionamento do SNS na assistência às grávidas. Recordando o que aconteceu quando Marta Temido era Ministra da Saúde, o fecho das urgências rompeu na comunicação social na semana dos feriados de junho de 2022 e assim continuou até agora.
A dificuldade está bem identificada:
- vem detrás e acentua-se ano após ano;
- não é sazonal, ainda que se agudize quando os médicos decidem (o tom é irónico) estar de folga, ir de férias ou não aceitar mais trabalho suplementar;
- o maior impacto é sentido na área metropolitana de lisboa, incluindo o Oeste, seguido do Alentejo e Algarve;
- justifica-se pela carência de várias especialidades médicas, entre as quais obstetras, pediatras, internistas, anestesiologistas e intensivistas;
- agrava-se devido a três fatores simultâneos: a saída de profissionais para o setor privado/emigração, a saída por reforma e a menor entrada de novos profissionais face ao ritmo das saídas.
A mudança política de 2022 para 2023
Se a dificuldade é a mesma, de 2022 para 2023 há uma mudança no modo de entender as soluções para enfrentar o fecho das urgências. Engane-se quem considerar que o que está em causa tem um cariz técnico.
Se sob a batuta de Marta Temido, a lógica do “plano de contingência para o verão” assentava em dar mais dinheiro aos profissionais para ingressarem no SNS e para trabalharem nas folgas e férias quando necessário, com a promessa de revisão das carreiras profissionais no horizonte, já sob a batuta de Manuel Pizarro, a lógica do “Nascer em Segurança no SNS” passa por convenções com maternidades privadas.
A mudança é digna de reparo: no espaço de um ano, o que era a “última instância” – referência de Marta Temido a acordos com privados – passou a primeira instância.
É digna de reparo porque mostra o quanto a mudança de ministros não comporta apenas “uma mudança de personalidade, energia e estilo”, mas também uma “mudança de políticas”. Recorde-se que o primeiro-ministro salientou o contrário aquando da saída de Marta Temido.
Aqui convém recuar até ao debate em torno da nova Lei de Bases de Saúde, aprovada em 2019.
Foi tornado público o quanto a entrada de Marta Temido em 2018 – contando com o apoio da esquerda no contexto da geringonça – alterou o espírito da Lei face ao que estava em cima da mesa com o ministro Adalberto Campos Fernandes. Esta alteração foi no sentido de introduzir maior restrição à relação público-privada.
Também foi tornado público o quanto o Presidente da República e vários setores da saúde mostraram desconforto com o que foi chamado de “deriva ideológica à esquerda” de Temido e a pressão para que a formulação da Lei de Bases fosse mais permeável ao setor privado.
Assim aconteceu, com a permissão de que o SNS celebre acordos temporários perante a manifesta incapacidade de assegurar a sua missão e os direitos constitucionais referentes à saúde.
Significados desta mudança
Há três ideias a reter desta mudança:
A primeira é que uma solução não concretizada em 2022 – não sendo claro se apenas por teimosia ministerial e/ou pelas condições impostas pelo setor privado – passou a ser o ponto central da resposta política em 2023, em concreto nos locais em que o SNS mostra maior debilidade.
A segunda é o quanto os termos inscritos na Lei de Bases da Saúde para a relação público-privada podem ser a única resposta viável no curto prazo. Poucos duvidam que dadas as dificuldades sentidas com as soluções apresentadas o ano passado, a alternativa às convenções com maternidades privadas teria sido o encerramento de mais maternidades públicas e por mais tempo.
A terceira ideia decorre de um argumento que o Presidente da República deu conta na nota de promulgação da Lei de Bases da Saúde em 2019. Marcelo Rebelo de Sousa referiu-se à relação permitida entre o SNS e o setor privado como “cobrindo os dois hemisférios governativos na abertura a caminhos políticos e legislativos diferentes, a escolher pelas maiorias de cada momento”.
Mas o que aconteceu foi a abertura de caminhos políticos diferentes, não somente dentro do mesmo hemisfério governativo, mas também na mesma maioria.
Tenho dito que a fratura ideológica sobre o sistema de saúde português já não se encontra entre o PS e o PSD; vive dentro do PS.