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A direita que faz mal à saúde

Opinião de Tiago Correia. Donald Trump, Jair Bolsonaro, Marine Le Pen, Giorgia Meloni ou André Ventura são alguns dos rostos mais conhecidos de uma nova direita que se instalou na América e na Europa.
Foto Canva

Tiago Correia

Fogem dos rótulos “populismo”, “autoritarismo”, “racismo” e “fascismo”, ainda que se pautem por uma cartilha que associa uma cultura antissistema, contradições ideológicas na relação entre o estado, o mercado e as liberdades individuais e acérrimas posições, tanto de defesa do nacionalismo, do conservadorismo católico e do policiamento violento como de oposição ao multiculturalismo, à liberdade de género, ao aborto e à eutanásia.

À medida que estes movimentos vão ocupando lugares de poder aumenta a necessidade de olhar para as implicações que terão nos sistemas de saúde e nos comportamentos das pessoas.

É justo dizer que o conteúdo destes movimentos pode não ser exatamente igual nos vários países. Ainda assim, sabe-se que respostas deficientes na gestão da Covid-19 estiveram associadas a alguns destes líderes, como os EUA ou o Brasil demonstram. Mesmo antes da pandemia, há evidência de retrocesso de políticas de saúde, em que a desproteção de imigrantes e de pessoas em situação de pobreza ganha destaque.

O facto de ainda não terem muito tempo de poder permite-lhes negar esta evidência ou argumentar com a pesada herança que receberam. Mais do que isso, a sua cartilha permite-lhes dar o dito por não dito com relativa facilidade. A primeira-ministra italiana, que a respeito da Covid-19 diz encontrar utilidade nos testes, nos certificados e nas máscaras e que chegou a pedir uma ação mais musculada da UE contra o alívio das medidas pela China, foi a líder da oposição que mais criticou tais soluções.

Equacionadas todas as cautelas, não pode prevalecer a ingenuidade nem o medo. Esta é mesmo uma direita diferente que põe em causa o bem-estar coletivo e a coesão social que os sistemas de saúde cumprem.

Enquanto a tradicional clivagem esquerda-direita constrói-se na oscilação entre o estado e o mercado, esta direita associa a suspeição às instituições. Não se trata apenas de questionar o sistema político, mas todas as instituições que, com as devidas imperfeições, construíram um mundo em que há espaço para todos terem o direito a nascer condignamente e a procurar a sua realização individual.

A ciência faz parte das suspeitas. Voltamos ao tema do negacionismo da pandemia e da forte resistência à vacinação.

O passar do tempo permite perceber melhor o fenómeno e os estudos estão a reportar associações entre a hesitação vacinal e o apoio a estes movimentos políticos. Um desses estudos foi realizado há pouco tempo em Espanha e conclui que entre o eleitorado do Vox a hesitação com as vacinas contra a Covid-19 era o dobro face à população em geral. Algo semelhante foi reportado nos EUA e em França.

O que este estudo acrescenta é que o carisma destes líderes influencia o comportamento do eleitorado em relação às vacinas. Logo, declarações de oposição ou dúvida conduzem mais facilmente ao negacionismo e à hesitação vacinal, enquanto declarações de aceitação atenuam estes efeitos, sem que nunca seja equivalente ao da população em geral.

A interpretação é que esta direita pode mesmo pôr em causa a saúde pública. Isso é inequívoco quando estes líderes estão na oposição. Ao assumirem o poder tem havido diferenças no modo como se posicionam face à ciência. O caso de Meloni em Itália parece mostrar alguma moderação que não se viu em Trump ou Bolsonaro.

Mas a moderação desta direita ainda está por provar. Dependerá da consciência do líder sobre o papel que cumpre para assegurar a coesão do país, do seu poder carismático para influenciar comportamentos do eleitorado e do equilíbrio de forças entre os seus apoiantes, onde haverá sempre grupos mais extremados.

Acima de tudo, fica por provar se os danos ao conhecimento científico, entretanto causados por dúvidas e suspeições, são superáveis.

Em Portugal houve sinais das dúvidas e do negacionismo entre o eleitorado do Chega. Também, a oscilação do discurso, em que André Ventura tanto desconsiderou as vacinas como assumiu vacinar-se.

A grande dúvida é o que o crescimento do Chega irá causar nas políticas de saúde e no comportamento dos portugueses. É devida muito mais responsabilidade a um partido com representação parlamentar e atenção das instituições de saúde para antecipar fenómenos de negação e suspeição que têm as condições para aumentar.


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