Saúde e Bem-estar

Nova lei do tabaco: críticas à lupa e como seguir em frente

A deriva sanitarista do Ministério da Saúde, o atentado às liberdades individuais, a imagem do Homem perfeito e as restrições ao consumo. A análise do professor de Saúde Internacional, Tiago Correia, à nova lei do tabaco.

Tabaco.
Canva

Tiago Correia

Os argumentos críticos a uma nova lei do tabaco – cujo conteúdo exato ainda não se conhece – foram muitos e nem sempre coincidentes. Juntei aqueles que mais ouvi no debate público para mostrar que a decisão sobre este assunto é um exercício mais complexo do que a maioria dos comentadores foi capaz de mostrar. Rejeito acusações de apoio acrítico ao Ministério da Saúde ou de ter uma visão asséptica da vida. A polaridade que, por norma, é redutora e preconceituosa voltou a ser notada nesta discussão. Ter consciência disso ajuda a construir opções mais ponderadas.

1. A deriva sanitarista do Ministério da Saúde

Surpreendeu a insistência em tornar este assunto numa matéria doméstica ou em utilizar o argumento "com o mal dos outros posso eu bem", em referência ao facto de restrições ao tabaco estarem a ser introduzidas noutros países.

Está em causa a transposição para as leis nacionais de uma diretiva europeia, que vincula os estados-membros a equiparar as restrições e a regulamentação do tabaco aquecido e cigarros eletrónicos ao tabaco convencional e a proibir a comercialização de produtos tabágicos com sabores.

Além disso, Portugal ratificou em 2005 a Convenção Quadro da OMS para o Controlo do Tabaco que visa um conjunto muito alargado de medidas, incluindo a restrição progressiva ao consumo.

Só é possível contrariar este enquadramento político e jurídico caso se queira discutir o projeto europeu e o reforço das instituições internacionais na área da saúde.

2. Atentado às liberdades individuais

Sendo um defensor das liberdades individuais – no modo como vivo e quero que os outros vivam –, não consigo ter essa facilidade de leitura a respeito do tabaco, por dois motivos: a dependência de uma substância aditiva (a nicotina) e a exposição aos determinantes comerciais da saúde. Seria bom que cada pessoa avaliasse em consciência se a oposição a mais restrições resulta da reivindicação da sua liberdade ou, pelo contrário, da falta dela perante a necessidade de fumar e perante um hábito que se habituaram a ver.

Claro que este argumento não é exclusivo ao tabaco e aplica-se a qualquer substância aditiva legal que faça parte do quotidiano, como o álcool.

3. A imagem do Homem perfeito

Esta é a crítica a que sou mais sensível e que partilho. Não creio que haja a vida desejável nem que seja possível definir a vida perfeita. Errar é humano, assim como é o desejo.

Sim, é legítimo querer fumar e saber que isso encurta a esperança de vida, tal como é legítimo andar de mota, fazer desportos radicais e tantas outras coisas. Mas há que reconhecer que estas opções colocam-nos perante a tensão com os deveres coletivos.

É uma tensão que existe à medida que os direitos coletivos (de saúde, educação, habitação, proteção social) se têm expandido, porque mais direitos implicam mais deveres.

Não há uma resposta simples ou apriorística sobre como resolver esta tensão. As respostas irão surgindo à medida que os problemas também forem surgindo.

Não sendo possível imaginar como é que esta tensão irá impactar o funcionamento das sociedades em 20 anos, o que parece certo, desde já, é que tenderá a aumentar de intensidade e a abarcar mais aspetos das escolhas individuais. Estejamos preparados para esses debates…

4. Restrições ao consumo

O debate inflamou-se contra as supostas restrições ao consumo de tabaco na praia, esplanadas ao ar livre ou nas imediações de edifícios públicos como escolas ou hospitais. Houve dois tipos de críticas: às medidas em concreto e ao princípio das restrições ao consumo em espaços abertos.

Quanto às medidas, recuso tecer comentários, simplesmente porque não se conhecem os termos exatos das restrições. O que o conselho de ministros diz é "alargar a proibição de fumar ao ar livre dentro do perímetro de locais de acesso ao público em geral ou de uso coletivo."

Só num rasgo de pura falta de lucidez é que o governo avançaria com todas as restrições pré-anunciadas. Que fique claro, se tal acontecer estarei entre os críticos.

Quando o conteúdo da lei for conhecido, aquilo que importa escrutinar é se as restrições são proporcionais face ao objetivo, exequíveis de implementar e aptas a serem fiscalizadas.

Quanto ao princípio, tenho concordância.

Concordo, porque complemento com a necessidade de reforço da educação e de apoio à cessação tabágica. Tanto quanto sabemos, é um misto destas políticas que produz resultados mais efetivos.

Concordo, porque dá um sinal político mais claro, forte e coerente a respeito de um consumo que, sendo legítimo, requer formas de desincentivo forçado por ser aditivo e prejudicial.

Concordo, porque considero que não é uma aberração política e está em linha com outros exemplos de proteção individual e não apenas de terceiros (proibição de condução sem o cinto de segurança ou de capacete em motorizadas).

Concordo, porque, após o esforço de 15 anos de políticas educativas e restritivas contra o tabaco convencional, o consumo dá sinais de ter entrado numa tendência de crescimento. O tabaco aquecido e os cigarros eletrónicos são uma opção interessante para fumadores crónicos, mas fizeram mais do que isso: alteraram o padrão de consumo e a perceção de risco da população em geral. Não se pode ignorar a evidência já recolhida de que estes produtos perpetuam o hábito tabágico, continuam a conter substâncias aditivas que criam dependência, trazem novos consumidores sobretudo crianças e jovens e continuam a ter implicações negativas para a saúde.

Últimas