Reportagem Especial

TRANSformação: “O meu cérebro era o de um homem, sempre foi”

Foram 19 cirurgias. Tudo o que poderia correr mal, correu. Se passaria por tudo outra vez? “Sim, claro”. O testemunho impressionante de Tomás, que não esquece que já foi Tânia. Uma história feita de angústia, de sofrimento, de provações físicas e psicológicas, mas também de serenidade, afirmação, resignação, resiliência, e, por fim, de amor. Durante vários meses Rui Caria fotografou o quotidiano do Tomás.

Rui Caria

Ao fotografarmos outras pessoas, não as estamos a fotografar apenas enquanto elas, mas enquanto nós as vemos e sentimos. É esta característica de eco de nós, que a fotografia tem a capacidade de produzir, que torna única cada abordagem a cada tema, a cada pessoa dentro de uma história.

É por isso que esta não é apenas a história de um homem trans. Esta é também a minha história sobre a história de um homem trans.

Há seis anos conheci o Tomás, de olhos grandes e alegres, falava-me abertamente sobre o seu processo de afirmação de género. A história, contada na primeira pessoa, era de tal forma fascinante que comecei a visualizar, em imagens, na minha cabeça, como seria o quotidiano daquele rapaz que estava à minha frente naquela mesa de café.

Apesar de saber a resposta, perguntei-lhe se o podia fotografar; “Não. Nem pensar. Não estou preparado para me expor”.

O que aprendi com a história do Tomás

Seis anos depois voltei a encontrar o Tomás. E nas breves palavras que trocámos percebi imediatamente que ele estava pronto. Foi tácito. Sabia que a história dele ia ser contada por ele e com ele. Uma história feita de angústia, de sofrimento, de provações físicas e psicológicas, mas também de serenidade, afirmação, resignação, resiliência, e, por fim, de amor.

Se me perguntarem agora o que é que aprendi sobre as pessoas trans, depois de ter passado o último ano a fotografar o Tomás? Aprendi que são pessoas. Não ameaçam nem metem medo. Não precisamos de fugir nem de perseguir. São pessoas, gente.

O devir é um dever quando a dor já é tão imensa que não se suporta; quando a forma da pele já não sustenta o ser lá dentro. É aí que o homem e a mulher querem explodir-se dos corpos onde nasceram aprisionados pela biologia. Para muitos cientistas, homem e mulher são meras construções das sociedades. Todos parecemos partir da mesma biologia com as diferenças que permitem a designação em género. E o “rótulo” é sempre colocado com base no sexo à nascença.

Assim parece ter de ser para que as sociedades se definam e existam. Mas se aceitamos isso como natural, porque será tão fraturante a ideia de cada um poder redefinir aquilo que lhe foi inicialmente dado, já que não perturba o conceito de par oposto que parece tão importante para as sociedades? Serão estes processos fruto da confusão entre a criação natural e a criação ideológica? Entre biologia e cultura?

Se esta história é também a minha história sobre a história de um homem trans, será bom começar por reconhecer o meu preconceito inicial. E se a afirmação do Tomás lhe reconfigurou o aspeto físico, a mim reconfigurou-me o pensamento.

Falar deste tema com algum conhecimento já é arriscado, mas em ignorância quase total é um desastre. Lembro-me de nos primeiros dias, conversarmos sobre a identidade, o género e a sexualidade, e de como tudo isso é facilmente confundível. Transexualidade e transgénero são terminologias cada vez menos usadas, à medida que o assunto vai sendo estudado pela medicina e pela academia.

Motores do preconceito: ignorância e medo

Trans é atualmente a palavra que melhor parece descrever a ainda chamada disforia de género, também ela a parecer não ter sustentabilidade enquanto conceito, já que há notícia de terem sido encontradas evidências da influência de algumas hormonas responsáveis pela identidade do género de forma puramente biológica, ou seja, a ideia de distúrbio ou doença começa a dar lugar à ideia de construção pela natureza, normalizando a questão, quem sabe, nos próximos séculos. Mas até lá o assunto está longe de deixar de ser discutido.

E apesar da opinião pública funcionar, também ela, através de pares opostos, dividindo o discurso sobre o tema, os comentários de ódio que grassam nas caixas de comentários dos meios de comunicação, e sobretudo das redes sociais, a cada notícia sobre a identidade de género, são ainda em número superior aos comentários de aceitação e compreensão.

A qualidade de muitas dessas opiniões, demonstram, quase sempre, provirem da ignorância e do medo; os conhecidos motores do preconceito.

“O meu cérebro era o de um homem, sempre foi”

“Claro que tinha ideia de que as raparigas teriam o período, mas nem queria acreditar quando me apareceu pela primeira vez. Assustado, perguntei à minha mãe o que me estava a acontecer. Agora já és uma mulher; respondeu-me.”

Durante dias e noites que já nem consegue enumerar, o Tomás, na altura Tânia, chorou em sofrimento. “O meu cérebro era o de um homem, sempre foi. Tinha um amigo que me tratava por Toni. Olhávamos para as raparigas da mesma forma.”

19 cirurgias: a transformação física

A tristeza com aquela espécie de aprisionamento biológico, fez com que o Tomás iniciasse um completo processo de afirmação de identidade. A compreensão, o carinho e o acompanhamento da família foram cruciais para a transformação física da Tânia no Tomás.

Sucederam-se consultas dos mais variados quadrantes da medicina. Foram dezanove cirurgias, poderiam ter sido cerca de metade se não se somassem os erros médicos e as complicações inerentes.

Tudo que poderia correr mal, correu. Compressas esquecidas dentro do corpo, retiradas meses depois, e infeções que quase o mataram, aconteceram duas vezes e ainda hoje são memórias bem vivas no Tomás que teve direito a todo o sofrimento que não deveria ter.

Se passaria por tudo outra vez? A resposta é dada antes de terminar a pergunta: “Sim, claro! Só posso viver assim não de outra forma ou noutra forma.”

Mesmo apesar de ter tocado na morte, nas mesas de cirurgia, por duas vezes que se lembre, o Tomás repetiria tudo. Esta obstinação em atingir o simples objectivo de Ser, apesar do desconhecido e da morte iminente que diz ter sentido, obriga-nos a parar. Obrigou-me a várias pausas na nossa conversa.

A transformação física do Tomás é, inevitavelmente, transformadora do pensamento para os que a ouvem como ouvi. Ele não busca ser homem porque já é, foi sempre. Ele procura apenas conformar o corpo à cabeça, a biologia às emoções e ao pensamento. Ele é um homem, e agora é-o de alma e corpo.

“A energia da Tânia preenche-me”

Ao princípio foi difícil para mim, conversar sem achar que a Tânia não seria outra pessoa de quem falávamos. Era e não era. Ela estava ali, porém apenas enquanto construção daquele homem. Essa dificuldade de perceção e comparação que tive, no início dos nossos encontros, diluiu-se nos dias e nas conversas.

O meu preconceito inicial era muito exacerbado pela ideia geral de que as pessoas trans anulam a sua existência anterior. E parece ser certo, segundo alguns estudos, que a mulher trans tem uma tendência maior para erradicar as memórias de ter nascido com o sexo masculino. Ao contrário, o homem trans, parece conviver melhor com a sua biologia inicial. E o Tomás estava em paz com a sua história, toda, nunca elidiu a Tânia e não o vai fazer.

“Só existo como sou agora, feliz e completo, porque tenho uma história. A Tânia fez parte dessa história e a energia dela preenche-me inevitavelmente e ainda bem.

Os quadros e fotografias de outros tempos povoam a casa do Tomás, numa saudável convivência de opostos que se fundiram para o renascimento de uma nova pessoa que busca agora percorrer o caminho em felicidade e harmonia.

Engenheiro informático de profissão, gosta de estar em casa a ler e a meditar. Os passeios pelas florestas do interior da ilha açoriana onde nasceu, e as caminhadas na areia, junto ao mar, são encontros consigo e por isso diz gostar de ir sozinho para poder pensar.

Acompanhar o Tomás nestes passeios, ao princípio, alterou as características dessa solitude, mas só compreendi isso passados alguns meses, quando por vezes ele se afastava e eu deixava de estar ali, ou quando as conversas davam lugar a confortáveis silêncios. Senti com o tempo que o estava a observar de longe. Finalmente poderia fotografá-lo e tentar contar a sua história.

“Estou tão feliz com a minha barba”

O Tomás vive agora um momento pleno de felicidade e é através das mais simples afirmações que ela transparece.

Ver a minha barba, ao espelho, todos os dias, é uma bênção. Estou tão feliz com a minha barba.”

A barba enquanto medidor de felicidade de uma pessoa poderá parecer curioso, e é. Mas talvez a comparação seja um gestor de felicidade. Talvez precisemos de nos comparar uns com os outros para conseguirmos garantir a ideia de unicidade, de identidade, de pessoa.

O Tomás fez isso, faz isso. Foi disruptivo, não aceitou o que lhe foi roubado e lutou. Lutou pelo direito à felicidade e ao amor quando, ainda muito novo, se entregou aos bisturis das dezenas de cirurgias ou acareou um mundo amedrontado de terríveis preconceitos.

São lutas que deixam cicatrizes por fora e por dentro. “Olho para as minhas cicatrizes e lembro-me de como todas valeram a pena.”

Os alinhavos que lhe percorrem agora o corpo, por fora, são o pequeno preço que este jovem de 36 anos pagou para que, por dentro, não haja costuras.

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