Arregala-se a vista e apura-se o palato. Em Amarante, perca-se de amores pela doçaria conventual, numa mão-cheia de tentações que as Clarissas deixaram como herança. No Minho, domina o o fino Pudim Abade de Priscos, enquanto no Douro o popular Doce da Teixeira é assíduo em todas as festas e romarias. A época de Natal justifica ainda mais uma paragem para a prova final da singular Rabanada à Poveira.
Pudim Abade de Priscos
Toucinho. Diz-se ser este o ingrediente “mágico” que eleva o Pudim Abade de Priscos aos céus. Perfeccionista e rigoroso, o pároco que lhe deu nome, Manuel Rebelo, serviu durante 47 anos na freguesia bracarense de Priscos. Foi um dos maiores gastrónomos do século XIX em Portugal e tinha especial talento para utilizar ingredientes incomuns. Reza a história que na passagem de D. Luís I e da família real pelo Norte de Portugal, em 1887, o abade, convidado para a confeção de um faustoso repasto, a um dos pratos terá adicionado palha triturada. Em conversa com o monarca, não hesitou em desvendar o segredo do sabor singular das suas receitas, o que terá indignado o rei. “Perdoai-me, senhor, mas toda a gente come palha – a questão é saber cozinhá-la”, terá respondido Manuel Rebelo. Toucinho, açúcar, Vinho do Porto, 15 gemas de ovos, canela e limão integram a receita desta iguaria, elaborada originalmente numa forma de cobre. Encontra bons exemplares pela cidade de Braga, entretanto expandidos por todo o Norte do país, sendo boas referências o da Doçaria Cruz de Pedra ou Sàbiá, em Braga. Pode levá-lo a passear pela “Cidade dos Arcebispos” com a versão take-away servida no Porta Nova Collection House.
Lérias
Conta-se em Amarante que a abundância de ovos oferecidos pelos locais às freiras do Convento de Santa Clara, erguido no século XIII, motivou a criação de uma panóplia de pecados em forma de doçaria tradicional. As claras dos ovos eram usadas como goma para passar a ferro e com as gemas as clarissas criaram doces que devolviam aos agricultores com cuidado especial: cada pequeno bolo devia ter calorias suficientes para que os camponeses aguentassem um dia inteiro de duro trabalho. A base de ovos, açúcar e amêndoa é comum às cinco principais receitas conventuais herdadas das clarissas em Amarante, que passaram do convento para as casas senhoriais, antes de chegarem às confeitarias: Lérias, Papos de anjo, Brisas do Tâmega, Barquinhos e Foguetes são especialidade local, a que se junta o muito atrevido S. Gonçalo, com história própria para conhecer localmente. Por ser companhia melhor para os doces do que o chá, conta-se ainda que muitas vezes iam os bules para a mesa cheios de disfarçado vinho verde. Com vista sobre o Tâmega, prove as Lérias da Confeitaria da Ponte, a laborar desde 1931, e aprenda a fazer estas doces tentações sob marcação prévia. Casa das Lérias e Confeitaria Lailai são outras doces sugestões.
Doce da Teixeira
Não há celebração no Douro e arredores sem Doce ou Biscoito da Teixeira. De tão popular, deu origem a um ditado, segundo o qual quem comparece em todo o lado é como este doce, omnipresente em qualquer romaria, festa ou feira. De forma retangular, cor castanha e consistência compacta, a receita secular, passada de geração em geração, preserva o nome da localidade do concelho de Baião onde nasceu. Elaborado com poucos ingredientes e parco em açúcar, revela a origem humilde: não integra ovos, é confecionado em forno a lenha e conserva-se durante um mês, mesmo à temperatura ambiente, garante Sónia Pereira, que herdou do bisavô António a receita e o saber fazer com origem há mais de 200 anos, assegura a doceira. Deve ser partido à mão, dita a sabedoria popular. Em Baião, pode adquiri-lo na Dólmen e no Fumeiro d’António.
Bolo Borrachão
Ao contrário do que o nome indica, remetendo para a embriaguez, o Bolo borrachão deve preparar-se em silêncio, garante uma das grandes embaixadoras da cozinha do Douro, Maria da Graça, alma da cozinha no restaurante Toca da Raposa. A tranquilidade já não se assegura a partir da prova nem depois: um dos principais ingredientes desta sobremesa é o Vinho do Porto. É ele que confere a textura húmida, assegurada por uma calda que também leva açúcar amarelo, com a qual se embebe o doce depois de cozido. Quanto melhor o vinho, melhor o bolo. Ícone duriense, é assíduo em dias de festa e conta-se que era frequente à mesa de D. Antónia Ferreira, a Ferreirinha. No restaurante Toca da Raposa, em Ervedosa do Douro, usa-se um Tawny com pelo menos 10 anos para a confeção do Bolo borrachão, depois servido com um cálice de Tawny 20 anos.
Cavacas de Resende
Reza a lenda que a origem deste doce remonta à Idade Média. Preparava-se um casamento na aldeia de Vinhós quando a peste negra obrigou a adiar a boda. Os parcos recursos determinaram que se conservasse o bolo já feito até a festa acontecer. Ao bolo foi então retirada a parte de cima e emergido numa calda de açúcar, técnica que lhe restituiu a frescura e fez sucesso entre os comensais. Em tudo diferem das suas homónimas: forma, textura e sabor. As Cavacas de Resende distinguem-se pela consistência de pão-de-ló humedecido com calda de açúcar, que também encima as fatias retangulares. “Logo de manhã, as doceiras estendiam sobre a toalha, toda franjada de rendas, vários doces muito cobertos de açúcar, que despertavam a cobiça do romeiro. Quem resistia àquele ‘ó freguesia, não vai meio arrátel? Olhe que são de Resende’”, conta-se sobre o comércio deste doce no século XIX, tradicionalmente oferecido por época do Natal e da Páscoa pelos caseiros aos patrões. Ainda hoje são amassadas num aparelho artesanal movido à mão, conhecido por “banco”, e cozidas em forno a lenha. Prove as Cavacas da Adozinda, em Resende, as mais afamadas da região.
Barriga de Freira
A riqueza de Arouca reflete-se na vasta tradição doceira e está associada à história do convento local, o Mosteiro de Santa Maria de Arouca. Um dos doces conventuais mais emblemáticos é a Barriga de freira, um creme amarelado e espesso, de comer à colher, feito à base de ovo, açúcar e amêndoa, um dos finalistas das 7 Maravilhas Doces de Portugal. Prove, polvilhado com canela, na emblemática Casa dos Doces Conventuais de Arouca, ou leve para casa num pequeno pote de barro. Com direito a certificado de autenticidade.
Caladinhos
Nem só de Fogaça vive a gastronomia de Santa Maria da Feira. Os Caladinhos, bolos redondos, achatados e com uma crosta crocante, são feitos com ovos, açúcar e farinha e também integram a lista de especialidades locais, apesar de não reunirem tantos adeptos. No Café O Trovador associam a criação da receita ao regime salazarista, mas a teoria não é unânime. Por lá diz-se que foram assim batizados por Augusto Padeiro, que, visitado pela polícia do regime aquando da confeção deste biscoito, disse aos empregados para estarem calados. Quando foi confrontado pela autoridade, afirmou que estavam a fazer Caladinhos.
Rabanada à Poveira
Foi com o intuito de dar uma nova vida às sobras do pão que, no início da década de 50, Leonardo da Mata criou a Rabanada à poveira, ou Rabanada do Leonardo, feita em pão bijou e moldada à mão para ficar mais redondinha. É uma referência na comunidade piscatória desta cidade, embora existam variações da receita adaptadas à criatividade dos diferentes restaurantes e confeitarias que a confecionam. Pode prová-la no restaurante Marinheiro, no Café Pérola do Mercado e na Confeitaria Dajuri, todos na Póvoa de Varzim.
Jesuítas
São várias as receitas de Jesuítas por essa Europa fora, mas a da Confeitaria Moura, em Santo Tirso, criada há mais de uma centena de anos por um pasteleiro de Bilbau, é das mais emblemáticas e um símbolo da doçaria do Norte do país. O Jesuíta tem a forma de um triângulo isósceles e é feito com massa folhada recheada com creme de pasteleiro, ainda que em pouca quantidade, e coberto com açúcar. Além da casa-mãe, a Confeitaria Moura tem dois espaços no Porto, na Baixa e na Boavista, onde se podem encontrar os verdadeiros Jesuítas de Santo Tirso.
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