Numa entrevista que Marcelo Rebelo de Sousa deu à RTP e ao jornal Público, após sete anos de mandato presidencial, deixou cunhada a sua opinião sobre o desempenho do Governo, em especial no último ano, frisando o contexto externo que potenciou a crise financeira no país. Ainda foi abordada a forte contestação social em Portugal, o estado da Saúde e a direção executiva do SNS. Questionado sobre o pacote de medidas à habitação, o Presidente indica as reformas que podem vir a ser concretizadas e as não concretizáveis do ponto de vista legal. O custo de vida no país, as polémicas com a TAP, a oposição do Governo e uma possível dissolução da Assembleia também foram os temas colocados em cima da mesa. Já num tom mais crítico e de desilusão ficou reservado para a Igreja Católica.
Governo
Em 2021, nasceu uma "maioria requentada" e "uma maioria cansada", que demorou muito tempo a formar-se depois das eleições antecipadas “inesperadas”, sublinhou Marcelo na entrevista.
“Nasce já com o desgaste de seis anos de Governo” e Marcelo ainda fala num “ano praticamente perdido”, admitindo que a orgânica do Governo foi pensada sem guerra.
O Governo entrou em atividade só em setembro, recorda o chefe de Estado, com mexidas na saúde e o "grande pacote de ajudas sociais" no final do ano. Mas ao tempo perdido apontou o dedo aos “casos e 'casinhos'” no Governo.
“Há um tempo perdido que se prolongou com várias vicissitudes internas do Governo”.
O cenário de pós-pandemia e de guerra prejudicaram a coesão social, rematou o Presidente da República.
Economia
Os números de crescimento económico “foram o melhores que se esperava”, admitiu Marcelo. Ainda assim observou que o tempo de guerra e de inflação culminam num sacrifício dos "mais pobres" e da classe média.
"É evidente que a realidade económico-social depende muito de como correr a guerra e a evolução da inflação".
Os governantes têm de encontrar soluções para lidar com os problemas do dia a dia. Neste ponto, o Presidente admitiu que “o primeiro-ministro e eu temos leituras um bocadinho diferentes da realidade”, referindo que “o primeiro-ministro olha para o lado cheio do copo e eu olho para o lado vazio do copo”.
Greves, manifestações, paralisações
Perante um clima aparente de contestação, Marcelo defendeu que “ainda não há” uma contestação generalizada. Isto porque, o desemprego tem sido uma componente que tem tido uma evolução “contida e favorável”.
Considerou, assim, que no futuro essa situação dependerá da evolução do desemprego.
Quanto à luta dos professores, o Presidente defendeu como “justa e legítima”, porque é “acumulado de muitos governos e muitos anos”.
Marcelo considerou que o caminho é “negociar” e deixa recados para o Governo e para os Sindicatos.
O Governo “faz mal se romper”, mesmo que tenha uma solução unilateral. Os sindicatos “fazem mal se romperem negociações” ou se “esticarem para determinado limite aquilo que é a sua luta”. Isto porque, refere que é importante o apoio da opinião pública.
Posto isto, o chefe de Estado concluiu que o acordo tem de incluir a recuperação do tempo de serviço, alertando que a recuperação integral “não é possível” do ponto de vista financeiro, neste momento. Contudo, colocou a hipótese de fasear esse processo, vincando a necessidade de se corrigirem as desigualdades entre professores.
A Inflação e os pacotes de ajuda
Há uma parte da inflação que parece "aproveitamento", sublinhou o Presidente Marcelo, levantando a hipótese de ser uma "inflação artificial", uma vez que o impacto é superior ao provocado pelo efeito direto da guerra na Ucrânia.
“Como encarar isso? Depende muito da evolução da economia e da evolução social. Acho que os próximos meses vão ser muito sintomáticos sobre isso”, rematou Marcelo.
"O Governo está numa de afinar à medida que a situação vai evoluindo. Não quer criar o precedente de uma crise nas finanças públicas (...) Não quer galopar na dívida pública".
Quanto às necessidades de reforçar os apoios sociais, devido à inflação, devem ser preparados dois cenários, otimista e pessimista. “Para o meio vazio, aquilo que se tem de fazer de intervenção social tem de ser mais".
O estado da Saúde e a direção do SNS
Marcelo é defensor da criação de uma direção executiva do SNS, mas adianta que “teria ido além”. Ainda assim, considerou que foi o possível "no contexto do Governo que existe".
Frisou que o SNS é a coluna vertebral da Saúde no país e afirmou que deve ser "repensado rapidamente"
"Para um Governo de esquerda é uma fórmula inteligente e possível, se funcionar, de salvar o SNS. A decisão política pertence ao Governo e Ministério da Saúde. A gestão não é feita pelo Governo. A máquina clássica não tinha a habilidade e capacidade necessárias para fazer a gestão".
Atentou que a transição de competências para a direção-executiva do SNS “tem de ser rápida”.
“Esta é uma corrida contra o tempo”, porque as necessidades em termos de saúde tendem sempre a agravar-se.
Assim sendo, entendeu que é preciso ter uma reconstrução sistémica do SNS “para que não se esteja muito tempo a intervir ponto a ponto”.
Pacote de Habitação
O “melão”, assim chama o pacote de habitação avançado pelo Governo, é um programa fundamental para a sociedade portuguesa.
“É de louvar que o Governo tenha apresentado um pacote desta dimensão, sete anos depois (…) Dar sete dias para discutir não sei quantos diplomas, depois de sete anos de espera, é uma coisa do outro mundo".
Há pontos de convergência possíveis com o PSD, em matéria administrativa, incentivos ficais à iniciativa privada e na necessidade de aumentar o investimento público em habitação.
As divergências surgem no património público devoluto, alojamento local e arrendamentos.
Sobre o arrendamento coercivo, Marcelo considerou que, ao contrário do que pensa o Governo, os municípios "não têm meios para descobrir" as casas devolutas.
No que toca às propostas do PSD, questionou a pertinência de ser a Autoridade Tributária a descobrir as casas devolutas, falando em "estatismo" e acontecendo a "perplexidade" do eleitorado mais conservador.
TAP
Para o Presidente, o relatório do IGF sobre a saída de Alexandra Reis da TAP trouxe "uma surpresa" de que o processo em causa foi uma "renúncia acordada", algo que não é possível. Além disso, estando na empresa há menos de 12 anos, a antiga administradora não teria direito à indemnização, aponta Marcelo.
“Não há consequências políticas para os ministros da tutela? O ministro das infraestruturas acabou de entrar, por isso é difícil de encontrar qualquer tipo de responsabilidades”.
No entanto, o Presidente não referiu diretamente se deveriam existir outras consequências para Fernando Medina, que escolheu Alexandra Reis para a NAV e para a secretaria de Estado do Tesouro.
Marcelo criticou a "ligeireza" da forma como foram escolhidos alguns membros do Governo. Nesse sentido, avisou o Governo de que o país fará um "escrutínio rigorosíssimo" das futuras escolhas de governantes.
Possibilidade de dissolução?
"Sempre defendi o cumprimento de legislaturas", sublinhou o Presidente.
"Mantenho o princípio de tudo fazer para se cumprir a legislatura. Agora, não me peçam para dizer que renuncio ao poder de dissolver (o Parlamento). Habituei-me a nunca dizer nunca.", afirmou.
Sublinha que "a dissolução só mesmo pelo Presidente da República e isso não se coloca neste momento".
"Se eu sentir que há alguma coisa patológica, excecional, o tal irregular funcionamento das instituições, que ganhe uma tal dimensão que paralise a existência do orçamento e torne impossível a governação, pondero isso bem".
Oposição forte ao Governo?
Questionado sobre se há uma alternativa forte ao Governo, o Presidente responde: “aritmeticamente há, não há politicamente”.
Em termos aritméticos, Marcelo recordou que as sondagens mostram de forma "consistente" que, neste momento, a direita tem maioria. A alternativa política não existe, porque a IL recusa entender-se com o Chega. Assim sendo "não se somam os votos".
Marcelo afirmou que, para existir alternativa de direita, "o partido liderante" tem de ser "claramente mais forte" do que os restantes.
"O PSD não chega a ter o dobro" da soma de IL e Chega: "Isso dá uma alternativa fraca", acrescentando que quem quer liderar uma determinada solução "tem de ter um ascendente claro".
Quanto ao regresso de Passos Coelho, lembrou que a liderança de Montenegro "foi legitimada pelo voto" dos militantes do PSD.
Abusos sexuais
O chefe de Estado deixou duras críticas à Igreja Católica no caso dos abusos sexuais a menores por padres.
O Presidente da República declarou-se hoje desiludido com a resposta da Conferência Episcopal Portuguesa ao relatório sobre abusos sexuais de menores na Igreja Católica Portuguesa e defendeu uma reparação das vítimas.
Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que "foi uma desilusão a posição da Conferência Episcopal", considerando que foi tardia e "ficou aquém em todos os pontos que eram importantes".
"Como Presidente da República a expectativa que havia era tão simples: era ser rápido, assumir a responsabilidade, tomar medidas preventivas e aceitar a reparação. E de repente é tudo ao contrário, em termos gerais, ou cada um para seu lado", lamentou.
O chefe de Estado sugeriu que agora a Conferência Episcopal Portuguesa faça "uma reflexão complementar para reencontrar o caminho que se perdeu nestes 20 dias".