“I hope the russians love their children too”
Sting, in “The Dream of the Blue Turtles”, 1985
“O grande problema é que, ao contrário da Rússia de Putin, o Ocidente não sabe muito bem o que pretende para o Leste da Europa”
Timothy Garton Ash, professor em Oxford
Putin está a jogar na certeza de que Biden não vai querer mortos americanos – por muito que os EUA estejam dispostos a defender a Ucrânia da provável agressão militar russa.
A Rússia propôs nova arquitetura de segurança europeia sabendo que os pressupostos seriam inaceitáveis para EUA e NATO. A integridade territorial da Ucrânia e a soberania de fazer as suas escolhas são inegociáveis. São princípios intocáveis para EUA e NATO (“tudo sobre a Ucrânia, nada feito sem a Ucrânia”).
Do ponto de vista de Moscovo, a entrada de Ucrânia na NATO como afronta e ameaça. A Rússia alega que é a NATO que está a fazer ameaças ao seu espaço de segurança, o que nos prova que até nas questões mais sensíveis da política internacional é (quase) tudo uma questão de perspetiva.
Altos funcionários da Administração Biden pedem diplomacia para gerir a acumulação militar russa na fronteira com a Ucrânia. Acreditam que o conflito ainda não é inevitável – estão a confiar na racionalidade que julgam saber existir no processo de decisão longo prazo de Vladimir Putin. A inteligência americana aponta para que a agressão russa possa consumar-se nas próximas duas semanas, algures por meados de fevereiro.
Está criada a maior crise de segurança em espaço europeu desde os anos 80 do século passado.
O QUE QUER A RÚSSIA DE PUTIN?
Quer alargar a sua esfera de influência. Quer ser relevante nesta nova dualidade EUA/China, que arriscaria relegar Moscovo para uma divisão secundária. Quer aproveitar o momento de recuo estratégico americano pós saída Afeganistão e em plena transição de poder para o flanco indo-pacífico. Quer antecipar-se à cimeira da NATO de junho em Madrid, onde será discutido o novo conceito estratégico de defesa da Aliança Atlântica, de modo a ter a garantia de que um dos pressupostos não será a entrada da Ucrânia e da Geórgia. Quer, com tudo isto, redefinir o novo mapa de segurança europeia, travando o crescimento do Espaço NATO a Leste.
Os russos mantêm-se confortáveis a jogar na duplicidade: juram nas palavras que não vão atacar; no terreno aumentam a ameaça e geram nervosismo perante as evidências de estarem a multiplicar exercícios de fogo real e a mobilização meios humanos e arsenal de combate.
PESSIMISMO CALCULADO
A Administração Biden faz uma última tentativa e apela ao lado racional de Putin. A troca de propostas por escrito entre Washington e Moscovo apenas fixou as posições previamente sustentadas por americanos e russos. O momento é de “pessimismo calculado”, mas com a via diplomática ainda não esgotada por parte do setor mais político da equipa de Segurança Nacional da Administração Biden. Raro consenso bipartidário em Washington permitirá o envio de tropas americanas para o Leste da Europa. O senador republicano Lindsey Graham foi claro: “Apoio os esforços do Presidente Biden de travar Putin. Putin tem que perceber que se invadir a Ucrânia perde qualquer canal de diálogo com este e próximos presidentes americanos, sejam eles quem forem”.
BIDEN ENVIA TROPAS, RÚSSIA FICA FURIOSA
Perto de três mil soldados americanos chegam nos próximos dias à Polónia, Alemanha e Roménia. Serão enviados 1.700 soldados da 82ª Divisão Aerotransportada para a Polónia; 300 do 18º Corpo Aerotransportado para a Alemanha e uma unidade blindada de 1.000 soldados para Alemanha e Roménia.
É mais um degrau na escalada de tensão que se vive nas fronteiras leste da União Europeia e da Ucrânia. John Kirby, porta-voz do Pentágono, garantiu que “essas forças não vão lutar na Ucrânia”. Mas EUA e a NATO já têm dezenas de milhares de outras tropas na Europa para recorrer a quaisquer desdobramentos adicionais para aliados do Leste Europeu.
As tropas que estão a ser enviadas são separadas e, além das 8.500 tropas americanas em alerta máximo, podem ser transferidas para a Europa para apoiar a força de resposta da NATO se for ativada. Washington reforça os aliados da NATO em resposta ao que considera a ameaça russa de invasão da Ucrânia, depois de Moscovo ter estacionado mais de 100 mil soldados, incluindo artilharia pesada e hospitais de campanha, junto às fronteiras ucranianas. Moscovo critica manobras militares dos EUA como “passo destrutivo”. O vice-ministro das Relações Exteriores, Alexsander Grushko, considerou que a decisão de Biden aumentará as tensões e reduzirá margem para solução política.
Os EUA acusaram, nas últimas horas, a Rússia de estar a “fabricar um pretexto para uma invasão” da Ucrânia, criando “um vídeo de propaganda muito gráfico” que retrataria um ataque falso da Ucrânia contra a Rússia. A divulgação do suposto complô pelos EUA é a mais recente de uma série de revelações destinadas a atenuar o impacto de qualquer pretexto que a Rússia possa usar para invadir a Ucrânia
Ao contrário dos EUA, a Alemanha não vai enviar soldados para os países vizinhos da Ucrânia – mas já se comprometeu com ajuda importante relacionada com hospitais de campanha e logística. Rússia e Bielorrússia marcaram igualmente exercícios conjuntos junto às fronteiras com a Polónia e países bálticos. Erdogan está em Kiev, a Turquia pretende ser mediadora entre Rússia e Ucrânia. A pretensão de Erdogan ainda não foi aceite pela Rússia, mas Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional dos EUA, e Ibrahim Kalin, conselheiro-chefe de Erdoğan, falaram na terça-feira sobre compromisso turco de “impedir mais agressões russas contra a Ucrânia”. Boris Johnson disse a Putin que invadir a Ucrânia seria “trágico erro de cálculo”. O PM do Reino Unido e o presidente russo concordaram em telefonema que “o agravamento não era do interesse de ninguém”. Biden e Macron falaram anteontem para coordenar posições. O Presidente da França voltou a conversar com Putin ontem, também ao telefone.
A CHINA A ASSISTIR DE CADEIRA
Esta sexta é dia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno. Vladimir Putin está em Pequim como um dos principais convidados do Presidente Xi Jinping. Kremlin antecipa que “os dois líderes vão aproveitar para falarem durante muito tempo” sobre a situação na Ucrânia e, num plano mais global, sobre a segurança na Europa. China tem-se mantido à parte do conflito iminente no Leste da Ucrânia, mas a preocupação do Kremlin em destacar a conversa longa de Putin e Xi em Pequim revela sinal de força de Moscovo. A China gosta de manter posição equívoca; mas não restam grandes dúvidas que interessa a Xi explorar mais uma fragilidade americana; não necessariamente uma guerra. Devemos esperar da China que esteja do lado russo mas seja fator dissuasor. Não por acaso, nos últimos dias, a China terá aproveitado o foco americano na crise da Ucrânia para aumentar os voos de aviões de combate sobre Taiwan. Pequim sabe que os EUA não estão em condições de assumirem duas frentes de conflito simultâneas nos próximos meses.
AINDA É POSSÍVEL ACREDITAR NA VIA DIPLOMÁTICA?
Putin acusa os Estados Unidos de querer “arrastar a Rússia para o conflito armado”. Em conferência de Imprensa após um encontro de cinco horas com Órban, o líder russo alegou: “O Ocidente ignorou todas as nossas preocupações sobre a Ucrânia. EUA e NATO querem expandir a aliança até à Ucrânia. Estou aberto a mais diálogo mas assim não pode haver solução”. Ao encontrar-se com Xi Jinping, em plena crise com a NATO e os EUA, Putin sinaliza assim ao espaço ocidental que a Rússia não está assim tão isolada nesta tensão e que a nossa perspetiva sobre quem está a explorar a ameaça pode ser contestada numa mentalidade não ocidental.
De Kiev surge a determinação de aceitar de conseguir gerir a ameaça russa falando diretamente com Moscovo, sem dependência do respaldo americano (apesar das ajudas militares. O Ministro Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba, foi claro: “Não vamos aceitar que ninguém nos imponha qualquer concessão, não vamos simplesmente abdicar de algo fundamental só porque alguma potência nos diz para fazer isso”.
Enquanto a diplomacia se mantiver em cima da mesa, por muito que os adiamentos indiquem falhanços sucessivos de um grande acordo que resolva a ameaça, o jogo de sombras no Leste da Europa pode evitar o pior: é que a última alternativa à diplomacia é a guerra.