Até onde vai a Inteligência Artificial, quando a dimensão emocional do Homem pode criar beleza onde tudo é seco e árido? Até onde iremos com máquinas que nos substituem, mas podem não nos arrumar num canto de um sentimento enterrado e esquecido? Onde mora a tecnologia no coração da arte?
"Escrevo estas palavras com o coração transbordando de emoção, pois não há forma mais sincera de expressar o que sinto por você do que através desta carta. Desde o momento em que nossos olhares se encontraram pela primeira vez, algo dentro de mim mudou para sempre. Você trouxe luz para os cantos mais sombrios da minha alma, iluminando cada dia com sua presença radiante." São estas as primeiras palavras que surgem como resposta ao pedido que deixei no famoso modelo de linguagem. O texto ainda e logo. E fica aqui mais um excerto: "Cada momento ao seu lado é um tesouro que guardo em meu coração. As conversas profundas, os risos compartilhados, os abraços calorosos – cada gesto de carinho fortalece nosso vínculo e me faz perceber que nosso amor é algo verdadeiramente especial."
É o que uma máquina, entre algoritmos e estatísticas, entre números e somas e subtrações de palavras, dentro da lógica, define o irracional e tantas vezes ilógico de onde brota um sentimento, o amor. Leva-me este trilho de palavras a uma obra de meados da primeira década deste século. André Gorz, austríaco naturalizado francês, escreve um hino ao amor, na reta final da vida da mulher da sua vida e de toda uma vida, tornado assim, também este, o momento final da sua vida.
Poeta e filósofo, ao encontrar a companheira de uma vida com o corpo corroído por uma doença terminal decide que os dois se deviam somar e abraçar na decisão derradeira de fazer parar o seu tempo, de colocar o depois no tempo dos outros, deixando na história de cada um apenas um ponto final. Lettre à D é escrito em 2006 e publicado em 2007 (já com edição em português) e torna-se uma obra prima, num adágio onde as palavras dança na tristeza do fim e na alegria de uma vida apaixonante, nesta que se tornou na égide das declarações de amor.
É uma carta de despedida e é também uma carta de um permanente encontro de amor. "Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e se mantém bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu te amo mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher."
Veja na íntegra os dois episódios da Grande Reportagem: “Penso, IA existe” e “Existe, IA pensa!”
Dorine irá morrer. Segue-se André. E fica o amor, no livro e na vida deles, que não termina na morte de cada um. Esta é uma reflexão sobre o amor e sobre a vida. Depois das palavras que abrem caminho nesta pequena obra de arte tudo o que se segue poderia ser uma elégia (e é e não é), sendo mais este um testemunho de um sentimento. "Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro. Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos."
É, talvez, estranho pegar numa história destas para um artigo de reflexão sobre a Inteligência Artificial. Numa altura em que tudo parece ter espaço e tempo dentro das novas tecnologias, é útil parar e pensar, refletir e sentir, respirar e olhar, agarrar a pele e ter na pele a respiração de um outro, do nosso outro. Tudo o que uma máquina ainda não é, talvez nunca o venha a conquistar.
Tendo sido um dos grandes debates em redor da Inteligência Artificial, a questão da consciência, da autonomia das máquinas, é determinante perceber até onde por chegar tudo isto. Até onde irão as máquinas que vamos alimentado de algoritmos, sabendo que terá a regulamentação um papel decisivo e essencial. E se, caso consiga alcançar esse patamar de consciência, como a iremos encarar, o que faremos dela e com ela, em que quadro jurídico se irá enquadrar? Talvez, para quem tenha visto o Westworld, e tenha andado às voltas com as questões filosóficas e éticas da personagem principal, Dolores Abernathy, uma máquina que de máquina parece nada ter, na dialética com os humanos. E é também esta, uma história de amor.
A ciência tem conseguido, até aqui, controlar os avanços, ter mão na tecnologia que cria. E depois, o que poderá acontecer com a autonomia das máquinas, da Inteligência Artificial? Vejo em meu redor receios e medos, alguma angústia e uma certa ansiedade. O que a máquina nos pode dar e tudo o que nos pode tirar. Quero acreditar no progresso, na ciência, no fascínio da tecnologia, nessa extraordinária capacidade de nos superarmos.
Ainda assim, não muitas as questões.
Haverá em algum momento um botão para desligar toda esta Inteligência? Chegaremos a esse dia e será que iremos a tempo? Ou será este apenas um momento na nossa História, um passo em frente na nossa evolução, um braço tecnológico que nos irá dar tempo, aliviar de algum fardo da rotina, das horas, permitindo-nos crescer em humanidade? Não me parece que exista seja quem for que se queira comprometer quanto a certezas no futuro.
Certo é que a arte, a nossa arte, a partir do nosso amor, tem algo que não se explica, está lá porque de outra forma não o conseguiríamos exprimir. É essa capacidade de entregar ao outro um sentimento que nos percorre a alma, numa pintura, numa música, num poema, numa carta de amor.
Para o Chat GPT, é o pragmatismo e o lugar comum. Não é feio o bonito, é falso, é plástico, é desprovido de aroma. "Prometo amar você com todo o meu ser, hoje e para sempre. Quero ser seu apoio nos momentos difíceis, seu companheiro nas aventuras da vida, seu porto seguro em meio à tempestade. Com você, encontrei não apenas um amor, mas também um lar para minha alma."