Guerra Rússia-Ucrânia

Compreender o conflito: 500 dias de uma guerra impensável

Este sábado, a maior guerra em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial atinge uma marca que pode parecer gigantesca, mas corre o risco de vir a revelar-se apenas o início de uma tragédia interminável. Putin meteu-se no atoleiro da Ucrânia e não sabe como resolver o problema gigantesco que criou. Mais do que um crime, cometeu um grande erro.

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Germano Almeida

Nesta fase, e ainda com as ondas de choque darebelião de 24 de junho, Putin desagrada aos oligarcas mais liberais e moderados, mas também à ala mais radical, que quer uma sociedade e economia de guerra ou até o uso de armas nucleares.

O que fazer perante isto?

1 – Putin caiu na sua própria armadilha

Putin escolheu esta guerra, mas os seus planos saíram-lhe completamente furados. Acreditou que o exército ucraniano não estaria à altura da supremacia russa. Confiou em demasia na fragilidade europeia pela excessiva dependência aos combustíveis fósseis russos (sobretudo da Alemanha e alguns países do antigo Pacto de Varsóvia). Contou demasiado com o suposto “declínio americano” (invasão do Capitólio, polarização política, fracasso no Afeganistão, idade avançada do Presidente). Exagerou nas consequências do Brexit (que incitou e financiou). Achou que tinha um controlo maior do que na realidade tem das dinâmicas internas do regime que lidera há mais de duas décadas. Teve, nos últimos 500 dias, várias desagradáveis surpresas: a mais recente aconteceu a 24 de junho quando, numa humilhação de todo o tamanho, viu pela primeira vez os pilares do regime serem abalados por uma rebelião interna, aos olhos de todo o mundo, em tempo real – e por várias horas.

2 – Conflito definidor e existencial

É na Ucrânia que, desde 24 de fevereiro de 2022, está a ser definida a nova fronteira da Europa democrática. Não terá a ver só com o destino dos ucranianos: será o destino de todos nós, europeus. A Rússia não foi provocada: avançou para a invasão porque Putin quis (e só por isso). Os países do alargamento a Leste da NATO não aderiram à aliança atlântica para conspirar um ataque a Moscovo: fizeram uma escolha livre e democrática no sentido de aderir a um espaço de segurança e valores comuns.

3 – Não nos iludamos com Moscovo

Os objetivos do Kremlin já tiveram diferentes versões. Mas os textos russos de 2021, entregues à NATO como “draft” de futuras negociações, não deixam grandes dúvidas: Putin quer regressar à arquitetura de segurança pré-1997, entende o alargamento a leste da NATO como provocação e ameaça. Ou seja: a questão russa não se cinge à Ucrânia. Moscovo já tinha desafiado o Direito Internacional em 2014 com a anexação da Crimeia e o conflito no Donbass – mas assumiu a 24 de fevereiro de 2022, sem pudor, a rutura com as regras do pós-II Guerra Mundial de que as fronteiras não se definem à força bruta, mas com acordos e tratados. Se queremos continuar a viver num mundo definido por regras e não pelo poder das armas, temos que defender a Ucrânia nesta fase decisiva para o nosso futuro coletivo.

4 - Negociar, sim. Mas quando? e Como?

O cenário de negociações, até agora, não foi sério. Os pressupostos para a paz, dos dois lados, são inconciliáveis. Putin quer uma paz do agressor. A paz da Ucrânia ser subjugada pela Rússia, abdicar de 20% do seu território. Ou seja: não é paz alguma. Já a Ucrânia de Zelensky exige (e bem): retirada total das tropas russas; indemnizações de guerra; julgamentos de crimes de guerra; respeito pela carta das Nações Unidas; recuperar a Crimeia. Perante o comportamento de Putin, também não é realista. Por enquanto, Zelensky continua a contar com o apoio dos líderes ocidentais no caminho de reconquista de todos os territórios ocupados pela Rússia na Ucrânia. Kiev tem dados sinais, nesta contrafensiva, de que pode também recuperar boa parte dos territórios pré-24 de fevereiro de 2022 e que a Rússia ocupou desde 2014 no Donbass e a sul. A grande questão é a Crimeia – que muitos apontam como possível ás de trunfo para uma futura negociações. Talvez durante o ano de 2024.

5 – A Rússia tem-se caracterizado pela ineficácia

Num ano, desde a conquista de Lysychansk, a Rússia só teve duas conquistas significativas no palco ucraniano: Soledade, a 13 de janeiro, e Bakhmut, mais de três meses depois (e agora em sério risco perante os avanços da contraofensiva ucraniana). Mais: essas duas aparentes vitórias foram concretizadas no terreno pelas forças do grupo Wagner, precisamente as mesmas que, a 24 de junho, viriam a avançar sobre território russo, chegando a menos de 200 quilómetros de Moscovo, num motim com contornos ainda por explicar, mas que expôs, de forma quase surreal, as fragilidades que se criaram no regime russo, sobretudo desde o erro crasso de Putin de ordenar a invasão em larga escala da Ucrânia.

6 – A boa surpresa europeia

A Europa foi uma das melhores surpresas e apanhou Putin completamente desprevenido. O ditador russo contava com a desagregação europeia, que promoveu e financiou nos últimos anos. Esperou, em demasia, que Orbán conseguisse minar muito mais do que tem minado essa coesão. Sim, o primeiro-ministro húngaro tem tido um comportamento vergonhoso (e vocalmente pró-russo). Mas quase tudo o resto tem corrido surpreendentemente bem no barco europeu. Quinhentos dias depois, há um sentimento maioritário na nossa “Europa, querida Europa” de que o destino da Ucrânia será também o nosso. E será mesmo.

7 – O amigo americano. Para já.

A Administração Biden tem tido a agulha certa na gestão da invasão russa da Ucrânia. A grande questão é se Biden manterá condições internas de o continuar a fazer até novembro de 2024. Não é só a posição ambígua (ou quase pró-russa) de Trump ou DeSantis – também são as reservas de parte do eleitorado democrata aos milhões que estão a ser enviados para a ajuda Kiev. Sem Biden na Casa Branca (e Blinken no Departamento de Estado e o General Lloyd Austin no Pentágono, já agora), os EUA estariam já muito mais hesitantes – e o destino da Ucrânia seria, por esta altura, ainda mais incerto.

8 – Mudança de paradigma. Estamos preparados?

Nós, europeus, não estávamos preparados para uma guerra assim. Crescemos, nas últimas sete décadas pós Segunda Guerra Mundial, a acreditar que bastava vencer os desafios económicos e políticos – e pusemos a Segurança de fora da equação fundamental. A falta de capacidade instalada ao nível militar ficou muito clara na resposta europeia na ajuda à Ucrânia nos últimos 500 dias. E mesmo com decisões políticas assertivas por parte dos líderes das instituições (Von der Leyen, Michel, Metsola) e de vários estados-membros da UE (aumentos significativos nos orçamentos de Defesa nos próximos anos), só com o reforço no acesso a armas e munições isso pode ter consequências claras. Compra conjunta e antecipada (a exemplo do que aconteceu, com sucesso, na aquisição de vacinas durante a pandemia) poderá ser elemento importante no impulso a uma nova indústria europeia de armamento. A resistência ucraniana está a baralhar todos os dados. A Ucrânia somos nós porque se a Ucrânia cair é a segurança da Europa que se desmorona.

Todos os dias os ucranianos nos têm dado uma prova eloquente de como isto pode ser verdade. A força moral de quem defende o seu território, a sua terra, a sua nação é muito mais poderosa do que a miséria moral de quem agride sem razão.

9 – O primeiro grande abalo no Kremlin

Que consequências internas terá para a Rússia a rebelião Wagner de 24 de junho? Vai Prigozhin sobreviver pessoalmente à traição? E como pode Putin recuperar a imagem de ditador inatingível e com controlo total? Na frente ucraniana, vai a crise interna russa reduzir ainda mais a eficácia e o moral das tropas russas no terreno? A CIA vai aproveitar o descontentamento com a guerra da Ucrânia, no seio da sociedade russa, para recrutar espiões. A revelação foi feita pelo próprio diretor da CIA, William Burns. “A insatisfação com a guerra continuará a corroer a liderança russa. Essa insatisfação cria uma oportunidade única para nós. Não vamos desperdiçá-la” .

10 – O rosto de uma resistência exemplar

Zelensky ficará como o rosto de uma resistência que ficará nos livros de História. Num ano, a sua cara envelheceu uma década – mas o coração de resistente nunca parou de bater forte. “Nesta guerra todos os dias são segundas-feiras”, disse aos ucranianos, num dos vídeos diários com que tem conseguido manter uma comunicação permanente, para manter a chama viva. Ao contrário de Putin – cada vez mais distante do seu povo e inacessível em relação a quem lidera – Zelensky distingue-se por um estilo próximo, aparece ao lado dos cidadãos ucranianos, assume-se como mais um entre muitos. Do seu destino dependerá o nosso destino coletivo enquanto europeus. Como Zelensky repetiu várias vezes desde 24 de fevereiro de 2022, “se a Ucrânia não aguentar, a Europa não aguentará”.

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