Eutanásia

O pouco que tem sido dito sobre a lei da eutanásia

Opinião de Tiago Correia, comentador SIC e professor de Saúde Internacional.

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Tiago Correia

Este texto não é sobre a opinião de quem escreve quanto à dúvida fundamental na eutanásia: deve o direito à vida sobrepor-se ao direito a não sofrer? Também não é sobre se a versão da lei agora aprovada pelo Parlamento é mais ou menos radical do que versões anteriores e se ultrapassa as reservas apontadas pelo Presidente da República (PR) e pelo Tribunal Constitucional (TC).

Este texto não é sobre isso não por falta de reflexão, mas porque muito do que é dito tem elevação e porque essas respostas estão intrincadas em convicções individuais, conferindo à opinião de cada pessoa uma legitimidade inalienável.

Quero lançar o olhar sobre o que tem estado ausente do debate. E este olhar importa agora porque cruzo-o com a indefinição sobre os próximos passos. Não só o que vai acontecer está em aberto, como os processos daí resultantes estão envoltos em temas que precisam de ser trazidos para o debate.

Fiscalização preventiva pelo TC

É o cenário mais provável e o desenrolar dependerá da interpretação dos juízes do Palácio Ratton. Os deputados que trabalharam na aprovação da lei têm interpretado a frase proferida pelo TC em 2021 de que “o direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância”, em sentido unívoco. Não tenho certeza disso. Tanto pode significar abertura para enquadrar uma lei da morte medicamente assistida como o seu contrário, por considerar que a antecipação da morte já tem enquadramento em Portugal. É o caso do Testamento Vital desde 2012 e o facto de a praxis médica aceitar tanto a sedação paliativa como a ortotanásia (interrupção de tratamentos desproporcionados, ineficazes e causadores de sofrimento).

O facto de haver soluções de antecipação da morte, quer por vontade própria quer por compaixão racionalizada da medicina, não pode estar ausente da fundamentação de uma lei da eutanásia ativa. Importa saber o que a eutanásia ativa permite de diferente em relação às soluções existentes e o que a sua despenalização acrescenta aos direitos inalienáveis à vida humana.

Este é o ponto de partida essencial, mesmo antes da discussão sobre se o direito à vida é ou não absoluto.

Veto ou promulgação do PR

Duma forma ou de outra, a lei entrará em vigor dada a maioria parlamentar. Mas isso não traduz qualquer certeza sobre a sua implementação.

Há aspetos deste tema em que a comparação internacional ajuda pouco – por exemplo, o conteúdo destas leis, os seus contornos e resultados –, mas há algo em que ajuda muito: perceber que a vontade do legislador não se sobrepõe à vontade dos profissionais de saúde. Por outras palavras, o processo político não ficará concluído com a promulgação da lei, porque a objeção de consciência pode ser um sério entrave à efetivação da eutanásia, com a agravante de criar iniquidades no acesso ao novo direito consagrado.

Perceber a objeção de consciência tem estado ausente do debate. Pode ser motivada por convicções religiosas e éticas ou por motivações políticas.

Sobre motivos religiosos e éticos, o sofrimento dos profissionais não pode ser ignorado. Não se trata de considerar que a compaixão com os profissionais deve sobrepor-se à compaixão com o sofrimento daqueles que desejam morrer. Mas sim de que uma lei que depende de intermediários deve assegurar o respeito por eles, porque em última análise isso defende o melhor usufruto da lei.

Há soluções para lidar com este problema, mas que também não têm sido faladas: o reforço dos currículos académicos sobre humanidades e comunicação é um exemplo.

Sobre a objeção de consciência motivada por questões políticas, a experiência internacional mostra que a eutanásia não deve avançar sem o diálogo com órgãos de representação das profissões de saúde. Mas também mostra que, caso esse diálogo seja enviusado, o debate público deve saber disso e o quanto é necessário dar a conhecer as experiências e emoções dos profissionais diretamente envolvidos na antecipação da morte.

Há uma legitimidade pública que os atores políticos em Portugal – por muito legitimados que estejam – não deviam descorar, sobretudo perante oposições políticas e/ou corporativas tão marcadas.

Acima de tudo, é essencial não esquecer o sentido deste debate: luta-se por legitimidade política ou pela resposta a necessidades da população?

Se não há dúvidas quanto a esta resposta, então espera-se que uma lei destas contenha instrumentos para que seja monitorizável e avaliável, tanto mais porque a disputa política não ficará resolvida.

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