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O impacto da crise climática em Madagáscar : “Perdi a minha casa, foi arrasada pelo ciclone Batsirai”

Em fevereito, os ciclones Batsirai e Emnati atingiram a costa oriental da ilha, provocando destruição generalizada. Equipas de emergência da Médicos Sem Fronteiras começaram a prestar cuidados de saúde a habitantes do remoto distrito de Nosy Varika.

SIC Notícias

Médicos Sem Fronteiras

Comunidades devastadas por ciclones em Madagáscar enfrentam choques climáticos sucessivos. “Os dois ciclones destruíram a minha vida, as minhas fontes de rendimento e o meu ambiente”, conta Randrianaivo Haingolalao Honorine, habitante da vila costeira de Mananjary, em Madagáscar. “Perdi a minha casa, foi arrasada pelo ciclone Batsirai e não a consegui reconstruir”, frisa ainda.

Não é o único residente nesta zona oriental de Madagáscar que enfrenta os impactos maciços dos ciclones que recentemente assolaram a região. Entre 5 e 22 de fevereiro passado, os ciclones Batsirai e Emnati abateram-se sobre a costa oriental de Madagáscar, provocando vastos danos e uma destruição generalizada. Estes ciclones danificaram vários centros de saúde, reduzindo ainda mais o já limitado acesso das comunidades remotas a cuidados de saúde. É estimado que mais de 300 000 pessoas foram afetadas pelos dois ciclones.

O Batsirai e o Emnati foram os últimos incidentes de uma série de choques climáticos pelos quais passaram as comunidades de Madagáscar nos anos mais recentes. O país enfrenta regularmente eventos climáticos extremos. A população na zona Sul do país está só agora a conseguir recuperar dos efeitos de uma seca excecionalmente grave, da qual resultaram alarmantes níveis de desnutrição. Madgáscar é afetado por tempestades tropicais de diversas intensidades todos os anos, tendo o Batsirai, em fevereiro, atingido o altamente destrutivo nível 4. Só desde o fim de janeiro passado até ao início de março, cinco tempestades tropicais e ciclones assolaram a ilha.

Muitas árvores foram desenraizadas e uma larga parte das colheitas ficaram danificadas, gerando preocupações para os tempos próximos, uma vez que, quando o Batsirai e o Emnati atingiram Madagáscar, a época magra – período ciclíco de escassez alimentar – estava no seu pico e as pessoas perderam substancial parte das suas fontes de rendimento.

A devastação causada pelos ciclones é imensa na costa oriental: casas, escolas e infraestruturas arrasadas e serviços essenciais de saúde interrompidos. A maior parte dos habitantes do distrito isolado de Nosy Varika vivem da pesca e da agricultura e, com a destruição dos campos de cultivo, enfrentam agora grandes dificuldades face ao aumento dos preços dos produtos alimentares e à perda das suas fontes de sustento.

O Batsirai teve particulares consequências graves até na atividade de pescas. Depois deste ciclone, os peixes são cada vez menos, afetando pesadamente o rendimento diário dos pescadores. Antes do Batsirai, os pescadores tinham um rendimento diário entre os 30 000 e os 40 000 ariaris malgaches (cerca de nove euros) e agora mal conseguem obter por dia um rendimento de quatro mil ou cinco mil ariaris (cerca de um euro).

Cuidados médicos gratuitos

Na esteira dos ciclones, equipas de emergência da Médicos Sem Fronteiras (MSF) começaram a prestar cuidados de saúde a habitantes do remoto distrito de Nosy Varika, onde o hospital local e centros de saúde tinham sido gravemente danificados. Devido às cheias e ao nível de destruição das infrestruturas, foi necessário ultrapassar muitos desafios logísticos para fazer com que a assistência médico-humanitária chegasse às pessoas que vivem nas áreas rurais isoladas.

“Foi mesmo um grande desafio fazer a assistência chegar. As estradas estavam praticamente inutilizáveis e tivemos de atravessar três rios para alcançar Nosy Varika. Em algumas vezes os rios estavam tão cheios que não era sequer possível atravessá-los”, descreve a coordenadora de emergências da MSF Mathilde Guého.

A MSF tem estado a trabalhar na reabilitação do hospital e de cinco centros de saúde danificados pelos ciclones. Equipas da organização medico-humanitária têm também deslocado por barco clínicas móveis até locais onde as pessoas se veem com muito limitado acesso a saúde desde o ciclone. As equipas médicas da MSF estão a tratar uma média de 345 pacientes por semana, sobretudo em casos de malária, diarreias e infeções do tracto respiratório, mas também um número crescente de crianças com desnutrição aguda.

Juliette, de 23 anos, está grávida e tem outros dois filhos, de 5 e 2 anos. Cultiva arroz, café e pimenta e vive no fokontany (bairro) de Ambodiriana, a uma hora de distância de caminhada do centro de saúde de Ambodirian’i Sahafary, onde se deslocou para obter cuidados médicos. “Sem dinheiro não podemos fazer nada. Se os cuidados de saúde não fossem gratuitos, não iríamos ao médico. Faríamos nós mesmos de médico”, desabafa.

A casa de Juliette assim como dos vizinhos foram destruídas pelo Batsirai. “Os ventos eram tão fortes… e nós não conseguimos antecipar as consequências, fosse a reforçar as casas ou a armazenar comida”, recorda.

Novas formas de sustento

Rondolphe, condutor e mecânico de barcos no município rural de Mahanoro, explica que a maior parte dos habitantes desta zona ganha o sustento na pesca e na agricultura: “As pessoas vão ter muitas dificuldades para recuperar – todas as colheitas foram danificadas e o peixe ficou muito difícil de encontrar. E com as alterações climáticas, e o tempo às vezes seco e às vezes de chuva, é difícil cultivar arroz porque, quando chove muito, as colheitas são arrastadas.”

Membros das comunidades locais reportam às equipas da MSF as formas que estão a encontrar para terem novos meios de sustento e sobreviverem. O agricultor Phillipe Randiar, oriundo do município de Namorona, está tentar fazer e vender pão desde que as suas colheitas de alho, de café e de arroz foram destruídas. Outros agricultores da região começaram a tentar pescar – mas como o peixe existente não é muito e, de qualquer forma, as pessoas também não têm como o comprar, é difícil ser otimista.

“Estamos profundamente preocupados como é que isto vai afetar as pessoas a longo prazo”, sublinha a coordenadora de emergências da MSF. Mathilde Guého explica ainda que, como a época magra estava no pico na altura em que os ciclones atingiram a zona e as pessoas perderam larga parte das fontes de rendimento, “é muito provável que isso tenha impacto na disponibilidade de alimentos e na nutrição, especialmente tendo em conta que muitas pessoas estavam já numa situação de grande vulnerabilidade”. “Estamos muito atentos e a postos para ajudar se for necessário”, remata.

Peritos têm alertado repetidamente que os eventos climáticos extremos como os ciclones vão ser cada vez mais frequentes e intensos devido às alterações climáticas. Comunidades vulneráveis como as de Madagáscar vão continuar a ser duramente assoladas por choques climáticos sucessivos e a debaterem-se para reconstruir uma vez a seguir a outra.

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