Na Câmara de Lisboa, transformada numa extensão de Alvalade pelos adeptos que celebravam o título nacional, Frederico Varandas proclamou uma “nova era”. “O Sporting deixa de olhar para cima para ver os rivais e volta a ser estruturalmente forte, preparado para vencer e continuar a vencer”. Ao lado, Rúben Amorim, responsável por esta “mudança de paradigma”, ouvia o presidente dar a grande notícia do dia. “Temos um dos melhores treinadores do mundo. Temo-lo hoje, temo-lo há quatro anos e temo-lo para o ano”.
Quatro anos e cinco títulos - duas Ligas, duas Taças e uma SuperTaça - separam a euforia e a dúvida. Amorim é hoje uma certeza, aposta ganha de Frederico Varandas e Hugo Viana, mas estava distante desse estatuto em março de 2020, quando custou ao Sporting 10 milhões de euros - que se tornariam 14 devido a juros de mora - pouco ou nada consensuais para alguém que começara a carreira dois anos antes, e que sequer tinha a habilitação necessária para treinar clubes da Primeira Liga.
No primeiro discurso como leão, Amorim afastou a pressão com a comunicação leve e afiada que o caracteriza, deixando uma declaração para a eternidade: “As pessoas perguntam: ‘E se corre mal’ E eu pergunto: ‘E se corre bem”. Correu bem, é certo. Mas o que explica este sucesso tão impactante como precoce? Qual é a fórmula do treinador que, em quatro anos, transformou o Sporting?
“Rúben não se impõe, lidera pelas ideias”
É no passado que se encontram algumas respostas sobre o presente. Quem conviveu diariamente com o técnico antes dos troféus garante que o Amorim do Sporting não é assim tão diferente daquele do SC Braga ou do Casa Pia, que “já era um caso sério”.
“Ele teve um impacto imediato quando chegou ao SC Braga, depois de um percurso imaculado na equipa B. Amorim não é um líder que se impõe por mandar, é um treinador que lidera pelas ideias, estando próximo dos jogadores. Compreende-os muito bem e é imperial na forma de comunicar com eles”, conta à SIC Notícias Rui Mendes, antigo analista do SC Braga.
Durante nove anos, Rui trabalhou com um invejável leque de treinadores. O primeiro foi Sérgio Conceição, o último Artur Jorge, e pelo meio encontrou nomes como Carlos Carvalhal, Sá Pinto e Jorge Simão. Entre todos, destaca Paulo Fonseca, Abel Ferreira e Rúben Amorim.
No Minho, Rui analisava adversários e preparava “jogos em cima de jogos”, numa “rotina alucinante” que o futebol do mais alto nível exige. Tinha um trabalho técnico, focado no jogo dentro das quatro linhas. Ainda assim, quando questionado sobre os treinadores prediletos, o que mais destaca tem pouco que ver com futebol.
“[Abel, Fonseca e Amorim] Foram os que mais marcaram pela forma como envolvem as pessoas à volta deles, incluindo os analistas e o staff inteiro. Se falarem com qualquer adjunto do Amorim, vão perceber que todos dão a vida por ele, graças à sinergia que existe entre todos no clube”
O “dom” da comunicação
Antigo jogador e internacional português, Rúben fez a maior parte da carreira no clube da infância, o Benfica, mas também defendeu o Belenenses, onde começou, e o SC Braga, por empréstimo dos encarnados, após uma rusga com o então treinador Jorge Jesus.
Em 2017, com apenas 32 anos, viu-se obrigado a pendurar as botas devido a uma lesão grave no joelho. Por outro lado, teve tempo para preparar a etapa seguinte.
Em entrevista à SIC Notícias, Raúl Silva, central brasileiro que somou mais de 100 jogos pelo SC Braga entre 2017 e 2021, diz que a experiência como atleta e a juventude faz com que Amorim fale a mesma “língua” dos jogadores, conseguindo “meter todos no mesmo barco, a remar para o mesmo lugar”.
“Era um treinador novo, cheio de vontade, que entendia muito do jogo e que falava a nossa linguagem, com sinceridade e frontalidade. Era como se tivéssemos um amigo no balneário”.
A comunicação de Amorim, tantas vezes elogiada pelos comentadores e jornalistas, é um trunfo precioso. Rúben sabe ler os ‘timings’ e jogar com as expectativas: no Sporting, em 2019/20, nunca assumiu o favoritismo de uma equipa que não ganhava a liga há 19 anos, enquanto ao longo desta época, foi adotando um tom mais otimista e, na festa do título, até falou em bicampeonato. Mas não é só diante dos câmaras ou dos adeptos que o treinador se destaca.
“A forma como ele fala aos jornalistas é a mesma com que fala aos jogadores. Tenta ser muito transparente e consegue passar a mensagem de forma clara e leve. Do que percebi pela convivência com ele, é algo natural e intuitivo. Acho que é um dom”, sublinha o analista Rui Mendes.
No Minho, mostrou-se (e ganhou) a todos
Rui e Raúl acompanharam Amorim do primeiro ao último dia no Sporting de Braga. Foi um período mais curto do que se recorda, face ao estrondo que aquela equipa causou em Portugal: ganhou a Taça da Liga e, em 13 jogos, somou 10 vitórias, um empate e apenas duas derrotas - ambas contra o Rangers, na Liga Europa – mantendo-se invicta em Portugal e derrotando os três grandes em cinco oportunidades.
A estreia de Amorim na equipa principal do SC Braga, após ser pescado aos ‘bês’ para substituir Sá Pinto, já dava pistas do que estava para vir. “Tudo foi muito bem preparado, estrategicamente e ao nível de treinos. A mensagem de confiança foi transmitida aos jogadores e tudo o que ele disse que ia acontecer realmente aconteceu. Era impossível não comprarem a sua ideia”, comenta o analista, que não esquece aquela goleada do SC Braga contra o Belenenses SAD, no Jamor, por 7-1.
Raúl Silva, titular em 10 desses 13 jogos, recorda uma “graça” de Amorim, no balneário, minutos antes da estreia. “Estávamos todos tensos antes do jogo começar. A primeira coisa que Amorim disse foi ‘nunca perdi na Primeira Liga e dependo de vocês para continuar assim'. É claro que nunca tinha perdido, nunca tinha treinado na Primeira Liga. Aquilo quebrou o gelo”. O brasileiro, que está na Roménia desde 2022, ao serviço do Universitatea Craiova, lembra-se “como se fosse hoje” de outro encontro, ainda mais importante, com o Benfica.
“Dos oito anos que passei em Portugal, sempre que ia jogar ao Estádio da Luz sabia que não seria um dia fácil. Era muito complicado. Ele [Amorim] passou a semana inteira a dizer que íamos vencer na Luz. Explicava como íamos jogar. Pedia muito para acreditarmos. Aquilo ficou na minha cabeça”.
Um jovem médio centro emprestado pelo Sporting, chamado João Palhinha, marcou no fim da primeira parte o único golo da partida, numa jogada ensaiada dias antes. “O Rúben disse-nos que se o canto fosse batido naquela zona, em que o Benfica era mais fraco, tínhamos possibilidade de marcar”, lembra Raúl. Aquele triunfo foi o primeiro do SC Braga na Luz, a contar para o campeonato, em mais de 65 anos.
Um estagiário de convicções
Amorim ia acumulando feitos assinaláveis, mas ainda se deparava com problemas inusitados como ter de pedir que assinassem por si as fichas de jogo. Sem o nível IV do curso de treinadores da UEFA, não podia, por exemplo, levantar-se do banco ou falar nas entrevistas rápidas depois dos jogos, uma situação que só seria ultrapassada em 2021, já no Sporting. Durante a primeira experiência profissional, em 2018/19, era ainda estagiário no Casa Pia, mas parecia o veterano da turma.
“Tínhamos um treinador e o diretor desportivo, Carlos Pires, perguntou-me se havia inconveniente de Amorim realizar aqui o estágio. Aceitámos, era um antigo internacional. Às tantas, já não sabia quem era o treinador. Em termos técnicos, era o José Paz, que não é pessoa para puxar galões e percebeu que o Rúben era outra coisa”, contou o presidente do Casa Pia, Vítor Seabra Franco, em declarações à Lusa.
A saída do Casa Pia surgiria por iniciativa do próprio, após uma dura punição por ter, enquanto estagiário, dado indicações para dentro do relvado durante um encontro frente ao Real Massamá.
Ao traçar a linha do tempo de uma carreira que tem tantos anos como títulos, percebe-se que o sucesso de Amorim no Sporting não surpreenda quem o conheceu noutras paragens. A forma de ser, de comunicar e até de treinar e jogar mantém fortes semelhanças, que o tempo, se calhar, até lhe deu razão. É um homem de convicções.
“Mais do que o sistema de jogo [3-4-3], que é sempre o mesmo e estou convencido de que vai continuar a ser, ele tem ideias e princípios de jogo muito bem definidos”, diz Rui Mendes. "Acredito que Amorim esteja mais maduro e ainda melhor no dia a dia, mas, honestamente, ele já era muito diferenciado, já era um caso sério, se quisermos usar este jargão.
Acabou-se o tempo da estrelinha
Para o analista, que continua a acompanhar de perto o futebol nacional, o Sporting, “principalmente com a permanência de Rúben Amorim", é “o grande favorito” para voltar a vencer a Liga na próxima época, aproveitando ainda o “momento de transição” em que vivem FC Porto e Benfica.
O tempo da “estrelinha”, expressão que Amorim abraçou para a equipa campeã em 2019/20, não existe mais. Aquele Sporting, que mantém alguns dos seus protagonistas, jogava muitas vezes de forma direta, com grande força pelos flancos, recorrendo aos golos de Pote e também de Coates, o central que fez de ponta de lança para ganhar um par de jogos.
Três anos depois, os leões vencem sem surpresa, de forma mais imponente e até versátil, com jogadores - leia-se, por exemplo, Gyokeres e Hjulmand - que chegaram para aumentar o leque de opções. "É mais que um campeonato, é uma mudança de paradigma", definiu Frederico Varandas, naquela varanda da Câmara de Lisboa.
Luís Neto, um dos líderes que vai deixar o clube na próxima época, contou que o título começou a ser construído na última jornada da época passada. “No balneário, prometemos a nós mesmos que não voltaríamos a estar naquela posição [o 4.º lugar]. Com novas peças-chave para colar ao puzzle, e já em estágio, o mister pediu ‘fogo nos olhos’ por um objetivo".
Com a permanência de Amorim, Varandas mostra que, mais do que a final contra o FC Porto (domingo, no Jamor), o Sporting já está a planear o futuro. E se calhar, naquele já famoso mic drop no Marquês, Rúben não estava só a lançar farpas aos rivais, mas a deixar claro, para os seus, o objetivo da próxima temporada.