Desporto

O Mundial dos escravos

Opinião de Luís Aguilar



O que vai acontecer no Qatar, no final deste ano, é um símbolo de muito do que está errado no futebol internacional. De tudo o que não deveria ser e não deveria acontecer.

É, antes de mais, uma celebração da escravatura, da violação dos direitos humanos, da ganância a qualquer custo e da corrupção.

Quando a bola começar a rolar, a 21 de Novembro, muitos adeptos irão esquecer, ignorar ou relativizar tudo o que está por trás deste certame de horrores. Mas há um facto inegável: alguns deles vão estar em estádios e outras infraestruturas que, segundo uma exaustiva investigação do The Guardian, terão custado a vida a mais de 6.750 trabalhadores migrantes desde Janeiro de 2011.

Organizações como a Amnistia Internacional ou a Human Rights Watch temem que estes números possam sofrer um forte aumento com a conclusão dos trabalhos nos próximos meses.

O governo qatari refuta os dados apresentados e diz que só tiveram lugar 37 mortes relacionadas com as construções para o Mundial. Versão bem distante da realidade, mas que merece o respaldo da FIFA quando alega que os óbitos são baixos em comparação com outros eventos de semelhante dimensão.

Em matéria de moralidade, a FIFA está onde sempre esteve. Já passou por outros processos de atribuição polémicos, debaixo de fortes alegações de subornos, ou a países que olhavam para os direitos humanos como algo inexistente. Basta recordar a escolha da Argentina para organizar a competição de 1978 debaixo do regime de torturas do general Videla.

Passadas mais de quatro décadas, a entidade que regula o futebol mundial continua a pensar que tudo isto faz parte e que, no final do dia, importante mesmo é o lucro. Seja qual for o preço que outros tenham de pagar, como acontece com os trabalhadores migrantes de Índia, Nepal, Bangladesh ou Sri Lanka.

As histórias que vão chegando da imprensa internacional são arrepiantes. Passaportes apreendidos, agressões, condições de higiene e segurança profundamente desumanas. Há de tudo. Algo que parece retirado de uma máquina do tempo, mas que acontece agora. À vista de todos. Sob a capa de um Mundial de futebol. De um evento que deveria servir para promover a igualdade, o fair-play e o oposto daquilo que está a acontecer no Qatar, um dos países mais ricos do mundo.

Em Portugal, salvo raras exceções, quase não tem passado de uma nota de rodapé, mais ainda numa altura em que nem se sabe se a Seleção irá marcar presença. O tema, porém, deveria ser transcendente à parte desportiva. O que está em jogo é muito mais do que uma taça. É a defesa da dignidade. Dos que não têm voz.

Em entrevista ao Sportsmail, publicada esta semana, Éric Cantona tocou na ferida. O francês, bem ao seu estilo, descomprometido e pouco dado a receios de comunicação, não podia ser mais direto: “É tudo à volta de dinheiro e a forma como trataram as pessoas que construíram os estádios foi horrível. Milhares de pessoas morreram e vamos celebrar este Mundial? Pessoalmente, não vou ver os jogos. Percebo que o futebol é um negócio, mas pensei que era o único sítio onde toda a gente podia ter uma oportunidade.”

Outros antigos heróis do jogo, porém, rejeitam esta ideia. Alguns deles até saíram de origens muito humildes, como os trabalhadores migrantes que já morreram, e só conseguiram fintar o destino de pobreza através do que alcançaram dentro do campo.

Figuras como Samuel Eto’o, Xavi, Cafu, Ronald de Boer ou Tim Cahill são embaixadores do Mundial do Qatar. E por mais que custe a alguns ler isto, até pela enorme simpatia e admiração que podem ter por estes antigos jogadores, cada um deles, ao colocar-se neste papel, é também um embaixador da escravatura.

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