Cultura

Martin Scorsese: lições de história

A estreia de “Assassinos da Lua das Flores” faz-nos reencontrar um cineasta com a capacidade invulgar de ser um investigador da história e um pedagogo do cinema.

Ao centro na imagem, Martin Scorsese durante a rodagem de uma cena de "Assassinos da Lua das Flores"

João Lopes

Aceitando serenamente o facto de os filmes terem passado a ser, quer comercial, quer artisticamente, objectos emblemáticos das plataformas de streaming, Martin Scorsese não tem deixado de sublinhar a importância — e, mais do que isso, o prazer — de os descobrir, sempre que possível, nas salas escuras. Por vezes, na grandeza das imagens (e na envolvência sonora) dos ecrãs IMAX.

É, justamente, o que tem estado a acontecer nas entrevistas que Scorsese tem dado a propósito do seu admirável “Assassinos da Lua das Flores”, evocação histórica da odisseia dos índios Osage — já estreado nas salas, surgirá daqui a poucas semanas na Apple TV+. São memórias das décadas de 1910/20, quando os membros da Nação Osage se tornaram riquíssimos graças à descoberta de petróleo nas suas terras… até que começaram a morrer, uns assassinados a sangue frio, outros, sobretudo mulheres, lentamente envenenados.

Tendo como ponto de partida o livro de David Grann com o mesmo título, Scorsese é, de facto, um artista capaz de falar da sua criação seguindo uma lógica eminentemente pedagógica, sem deixar de remeter para memórias mais particulares que, de uma maneira ou de outra, envolvem a sua formação, não exactamente como cineasta, mas espectador — veja-se o exemplo reproduzido aqui em baixo.

“Assassinos da Lua das Flores” serve a Scorsese para nos convocar para verdadeiras lições de história. Não para reduzir a história do seu país a uma colecção de episódios mais ou menos pitorescos, muito menos para sugerir que a abordagem dessa história depende apenas do guarda-roupa certo ou dos mais recentes efeitos especiais… Nada disso. Aliás, pelo menos desde “Gangs de Nova Iorque” (2000), ele é alguém cujo trabalho reflecte o desejo, e também a urgência, de lidar com as memórias individuais e colectivas do seu país para lá de qualquer mitologia redentora, nomeadamente devolvendo aos povos indígenas o seu lugar, e também a sua dignidade, no interior dessas memórias.

Nesta perspectiva, ele é um herdeiro directo dos temas, e também das contradições, do classicismo de realizadores como John Ford, sem deixar de ser um discípulo de heranças externas, a começar pelo grande cinema italiano — será preciso recordar que Scorsese é de ascendência italiana?

“Assassinos da Lua das Flores” resulta um épico em que o reconhecimento da violência que se abateu sobre os Osage há cerca de um século não pode ser dissociado de um labor de permanente reflexão sobre os horizontes temáticos e simbólicos do próprio cinema — à sua maneira, eis um filme que nasce de um profundo amor pela América.

Últimas